A IMPORTÂNCIA DOS PERSONAGENS SECUNDÁRIOS

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Nenhuma obra de ficção se sustenta sem, no mínimo, bons personagens secundários. Se eles forem marcantes, melhor ainda.

Em filmes, os personagens ao redor do protagonista ou dos protagonistas são fundamentais para tornar a narrativa dinâmica, mesmo em histórias fora do padrão de Hollywood. O menor dos papéis pode transformar radicalmente a trama. E até roubar a cena do personagem principal.

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Podemos assistir a um filme ou a uma peça de teatro com um único ator ou atriz, em que ninguém mais aparece. Mas será na interação desse único personagem com o mundo exterior, por meio de cartas, conversas ao celular, vendo televisão e outras atividades, ou concentrado em seus próprios pensamentos e ideias, relembrando pessoas do passado, que os personagens secundários vão se revelar, talvez de uma maneira até mais intensa, por não estarem presentes em cena.

Em literatura, a construção de personagem se dá de várias maneiras, superando as possibilidades do cinema, do teatro, dos games e por aí vai. Curiosamente, os recursos do autor são mais limitados, mas é ele que possui maior liberdade na hora de criar os seus mundos e decidir quem vai habitá-los.

Seja a história um monólogo interior modernista ou a mais insana fantasia épica, protagonistas sozinhos não sustentam uma narrativa.

É tão chato ler uma ficção cujos coadjuvantes aparecem na trama apenas para bater o cartão de ponto.

E quem são os personagens secundários?

Segundo o roteirista Scott Myers, existem três níveis de personagens: primários, secundários e terciários.

“Primários: os protagonistas.

Secundários: personagens recorrentes com menor importância.

Terciários: personagens que aparecem em uma ou duas cenas, com um propósito específico.”

Essa é uma classificação bastante básica. Mas serve como exemplo para afirmar que realmente existem diferentes níveis de participação de cada personagem.

É evidente que se torna impossível, em qualquer história, desenvolver com maior profundidade todos os personagens. Sempre haverá protagonistas, a razão de ser da trama; coadjuvantes secundários e terciários, fundamentais para dar mais consistência à jornada dos protagonistas; e figurantes, apenas para compor a paisagem. O leitor espera ver o esforço do autor em contar a história com energia por meio desse elenco, mesmo quando o enredo é muito importante.

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A escritora Charlie Jane Anders dá 10 dicas de como escrever personagens coadjuvantes:

1) Dê a eles, no mínimo, uma característica marcante: tomando Charles Dickens como exemplo, o mestre dos personagens secundários e terciários, Anders mostra que um personagem pode chamar a atenção pelo jeito como anda ou por seus hábitos, dando verossimilhança e brilho a menor das participações.

2) Dê a eles uma história de origem: como personagens coadjuvantes têm menor ou pouquíssimo espaço na trama, seria interessante criar uma origem, contar como determinado personagem se tornou quem é, em algumas linhas ou parágrafos. Não um perfil, mas uma história de origem tipo dos super-heróis, revelando o que o levou à sua transformação.

3) Faça-os falar de maneiras diferentes: não faça seus personagens falarem todos do mesmo jeito. Assim como pessoas reais, personagens devem se expressar com discursos variados. Pessoas são lacônicas, prolixas, com diversos graus de instrução e experiências de vida. Personagens podem ser assim também.

4) Evite fazer deles um poço de virtude ou representantes do autor: personagens virtuosos são chatos, ninguém se importa com eles. Nós somos falhos. Personagens também devem ser. Mas o pior é criar um personagem apenas para transmitir as ideias do autor. Cada personagem deve ter sua personalidade.

5) Relacione-os a um local específico: uma maneira de dar mais consistência a um personagem, mesmo sendo secundário ou terciário, é ligá-lo a um local que, de certa forma, o identifica. Assim ele não se tornará genérico demais. Pode ser uma taverna, um bar, uma sala de máquinas etc. Tanto o personagem como o cenário se tornarão mais reais.

6) Apresente-os duas vezes, primeiro no pano de fundo, depois em primeiro plano: apresente o personagem por meio de outro ou outros personagens, numa menção ou referência. Até ele aparecer em cena. O leitor pode lembrar dele mais tarde. Como fazemos numa festa, quando somos apresentados a alguém, e só depois batemos um papo com essa pessoa.

7) Tenha foco na importância deles para seus protagonistas: por mais sensacional que seja seu elenco de apoio, não se desvie do caminho. O mais importante é fazer da jornada dos protagonistas uma experiência mais completa por meio da interação com os outros personagens. Não invista além do necessário na interação entre dois personagens coadjuvantes.

8) Dê a eles um arco, ou a ilusão de um: criar um arco para um personagem é difícil. Criar um arco de mentira é fácil. Apresente seu personagem de determinada maneira, e, num ponto mais avançado da história, mostre sua participação com uma mudança de atitude. O leitor não verá a evolução do personagem, e sim o resultado. Isso torna personagens secundários mais interessantes, sem cair naquele comportamento uniforme.

9) Quanto menor a participação, mais caricatural deve ser o personagem: a própria Charlie Jane Anders admite que a dica é discutível. Mas ela afirma que os personagens coadjuvantes devem ser tridimensionais ou cartunescos a partir da vontade ou estilo de cada autor. Nos livros de Douglas Adams, os personagens coadjuvantes são ainda mais cartunescos do que os protagonistas e essa é a graça!

10) Decida quais personagens coadjuvantes serão esquecíveis: certos personagens secundários, terciários e figurantes terão que ser rasos porque você não quer que todos chamem a atenção do leitor. Não há como todos os personagens de sua história ter personalidades definidas, características próprias e um passado. É conteúdo demais para o autor elaborar e para o leitor assimilar.

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Vamos a um exemplo.

Este é um trecho de uma história minha inacabada. Uma ficção científica, passada num Brasil do futuro. Petros Rai, o protogonista, é um mercenário que vai ao escritório de um chefão do crime, a negócios.

Petros Rai entrou no bar. Poucos se importaram com sua chegada. Deram uma rápida olhada nele. Logo voltaram a beber, a fumar, a acariciar prostituas e a jogar cartas. Não havia nenhum tipo de música tocando. Ele pôde captar as reações, localizar mais ou menos de onde vinham. Por experiência, sabia que um ou dois frequentadores o observava atentamente, dos cantos mais escuros.

O ambiente não trazia novidades. Até a disposição do balcão e das mesas era óbvia. Era necessário um estômago forte para aguentar o ar viciado.

Entrou no bar como um frequentador qualquer. Não um frequentador regular ou fiel, mas comportava-se como um habitante da Cidade Baixa. Forasteiros eram apenas tolerados. Pelo menos, aqueles que tinham dinheiro para pagar suas bebidas e refeições.

Petros Rai teve sorte. Encontrou logo um espaço para ficar de pé junto ao balcão.

O barman não se aproximou de imediato. Era um cara robusto com uma cabeça pequena.

“Uma dose de pura”, disse Petros Rai, olhando para o barman.

O barman o encarou. Sem pressa, virou o corpo, deu dois passos para trás e pegou uma garrafa na prateleira do fundo. Pegou um copinho de vidro transparente embaixo do balcão. Derramou um líquido de cor âmbar no copinho até enchê-lo. Deixou a garrafa ao lado.

“Uma moeda.”         

Petros Rai meteu a mão no bolso da calça e colocou sobre o balcão uma moeda.

O barman olhou-a fixamente.

Não era a moeda que esperava receber.

Ela era igualmente prateada, porém maior e mais espessa. E tinha gravada uma cabeça de sapo de perfil.

O barman deu mais uma olhada em Petros Rai, que se manteve firme. Depois virou a cabeça e dirigiu o ollhar para alguém entre os frequentadores. Um homem magro e barbudo, com uma prostitua no colo, balançou a cabeça, confirmando algo.

O barman voltou-se de novo para o homem à sua frente.

“Siga pelo corredor à esquerda”, disse o barman.

Petros Rai pegou a dose de pura e tomou-a de um só gole. O álcool ardeu em sua garganta.

O barman não testemunhou nenhuma careta, tosse ou olhos marejados.

Petros Rai colocou o copinho de vidro de volta no balcão e se afastou. Uma onda de calor passou pelo seu corpo.

O barman recolheu a moeda, o copinho e a garrafa para baixo do balcão. Foi atender outra pessoa.

Petros Rai seguiu bar adentro, passou pela extensão do balcão, e atravessou um longo corredor.

Mesmo que o barman e os frequentadores do bar não retornem à história, a participação de cada um deixou sua marca ou foi mera figuração, avançando a trama de maneira dinâmica e contribuindo para o desenvolvimento do protagonista, para mostrar um pouco mais quem ele é e quais são seus limites.

Essa cena do bar poderia ser descrita em poucas linhas, ou num parágrafo, fazendo com que o protagonista fosse logo ao que interessa: o encontro com o chefão do crime. Mas seria tão menos interessante. Não revelaria muito de como o bar podia ser um lugar perigoso para nosso protagonista, e como ele se sairia em situações tensas.

Uma história com um bom elenco de coadjuvantes tem mais chances de intrigar o leitor, de fazê-lo avançar as páginas, do que uma história que concentra quase todos os esforços nos protagonistas.

PORTAIS, HQ DE FC NACIONAL

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Quando eu soube desse projeto no Catarse, fiquei empolgado em apoiá-lo pela beleza do material de divulgação. O roteirista Octavio Cariello e o ilustrador Pietro Antognioni souberam vender bem seu peixe com um vídeo dinâmico com páginas finalizadas da HQ. Infelizmente, a promessa se cumpriu em parte.

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Portais me deixou fascinado porque artistas nacionais criaram um dos universos mais interessantes que vi em quadrinhos nos últimos anos, com qualidade internacional. Os cenários e personagens no traço mais realista e cores elegantes de Antognioni têm muita expressão e criatividade. Bebem em várias referências (por exemplo: quadrinhos de FC europeus, filmes de FC das décadas de 60 e 70, quadrinhos pulp como Flash Gordon), mas são imagens que mantêm uma identidade própria.

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Terminada a leitura, porém, um universo tão rico e executado visualmente conta tanta competência, perde bastante do brilho pelo roteiro fraco. Afinal, uma HQ também tem que contar uma boa história.

Em Portais, conhecemos a jornada de cinco personagens que vivem em diferentes épocas na Terra e que são teleportados para um futuro distante. O planeta está completamente transformado, com criaturas inteligentes variadas, inclusive semelhantes a animais como sapos, tigres e leões. Os protagonistas se envolvem numa guerra de poder pela disputa de um trono.

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A trama é promissora, mas logo nas primeiras páginas se perde numa sucessão de subtramas, sempre apresentando personagens novos e desenvolvendo mal os que já foram apresentados. Os autores da HQ deixam a impressão de  que queriam mostrar todo o universo criado de uma só vez, na dúvida se haveria volumes que continuassem a saga.

O leitor pode ficar babando pela arte e cores, mas dificilmente terá conexão com a maioria dos personagens. As exceções são Shastah, o irmão rebelde e irônico do tirano, e Enki o cientista, criador da máquina do tempo. Eles têm arcos mais completos.

Um atrativo muito bacana é o material de bastidores com esboços, arte conceitual, fichas dos personagens e um passo a passo do roteiro à arte final.

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Fico na torcida para que saia um segundo volume com um desenvolvimento mais acertado desse universo que me encheu tanto os olhos.

Portais, de Octavio Cariello e Pietro Antognioni, 124 páginas, Terracota.

AVALIAÇÃO: REGULAR

MENTIRA BRANCA PESADA

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Rachel Dolezal atualmente e na adolescência

Nos últimos dias, a imprensa americana e a de outros países noticiaram e analisaram um caso curioso envolvendo raça e identidade. Rachel Dolezal, uma ativista dos direitos dos negros na pequena cidade americana de Spokane, estado de Washington, que sempre se apresentou como negra, foi acusada pelos pais biológicos de, na verdade, ser branca.

Questões de raça, etnia e preconceito nos EUA são muito bem definidas. Lá um americano é alguém que geralmente se reconhece e é reconhecido por pertencer a um determinado grupo étnico, herança de tantas levas de imigrantes de todo o mundo que foram fazer a América. Caso à parte são as pessoas oriundas da África, levadas à força pela escravidão, e dos nativos americanos, que tiveram suas terras invadidas.

Então mesmo que a pessoa não tenha características físicas típicas de determinado grupo étnico, ao se conhecer sua família e seu passado, esta pessoa, nos EUA, sempre será identificada como irlandês, paquistanês, italiano, latino, ou negro.

Fisicamente, a pessoa pode até ter a pele clara e um cabelo que não seja exatamente crespo. Mas ela será considerada uma pessoa de cor, quando se conhece sua herança étnica e cultural. Muitas vezes, a vida de quem é birracial nos EUA não é fácil, tendo que sofrer com o preconceito não apenas dos brancos, mas também de seu próprio povo.

O significado popular do termo raça só traz mais confusão para o entendimento de casos como esse. Dividir a humanidade em raças a partir da cor da pele é um erro. A Ciência mostra que geneticamente todos nós somos muito parecidos, sendo as variações físicas adaptações evolutivas a cada ambiente ao redor do planeta. Do ponto de vista social, o termo raça tanto está relacionado a justificativas para propagar o preconceito e violência como estimular à afirmação, a busca por direitos. Portanto, raça só existe uma, a humana. Mas enquanto o racismo existir, a cor da pele ainda será tema para debate.

Por isso, o caso de Rachel Dolezal gerou tanta polêmica, entre negros e brancos.

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Os pais biológicos de Rachel Dolezal

Tudo começou com a publicação de uma reportagem num jornal local, questionando a identidade racial de Dolezal. Na reportagem, seus pais biológicos, que moram no estado de Montana, afirmaram que Dolezal era branca.

Os pais afirmaram que a filha tem ascendência alemã e tcheca, com algum traço de nativos americanos. Mostraram a certidão de nascimento e fotos antigas. Depois que a reportagem foi publicada, o caso explodiu na imprensa americana e na internet.

Em resumo, a trajetória de Dolezal vai de uma família branca religiosa conservadora (ela não fala com os pais há anos), com uma longa temporada no Alabama, convivendo com muitas pessoas negras, chegando a Spokane, uma cidade com 2% de população negra. O ex-marido de Dolezal é negro.

O que torna a história dela bizarra são as várias mentiras para sustentar sua negritude. Ela sempre apresentava um homem negro como seu pai nas redes sociais. O filho negro adotado por ela, na verdade, é seu irmão adotivo. Ela se considerou negra para receber uma bolsa de estudo numa universidade importante e para presidir a comissão de ombudsman da polícia de Spokane.

O triste de tudo é que, conforme os relatos da impressa e de gente que a conhece, afirmam que ela é um membro ativo da comunidade de Spokane (como os arquivos on line do The Spokesman-Review podem mostrar desde 2005), uma professora universitária que ensina Cultura Afro-Americana e presidente local da NAACP (National Association for the Advancement of Colored People), uma das mais importantes entidades do movimento negro nos EUA. Ou seja, ela é uma pessoa que está nas trincheiras na luta pelos direitos dos negros, como disseram. Mas o problema é que os fins não justificam os meios.

As tentativas de Dolezal de se defender não foram muitos convincentes. Após o escândalo, ela deu uma entrevista sustentando sua posição.

Em artigo no The Guardian, Alicia Walters, ativista pelos direitos das mulheres negras, se mostra insultada com a farsa de Dolezal. Walters nasceu e cresceu em Spokane. Filha de mãe branca e pai negro, ela é mulata, de cabelos crespos. Em seu relato, ela diz que, quando criança e adolescente, sempre sofreu a rejeição dos outros por ser negra. Até mesmo de garotos negros, que preferiam namorar meninas brancas. Ela foi tão afetada pelo preconceito que tentava alisar o cabelo para ser mais aceita. Apenas depois que ela assumiu sua negritude e seu cabelo natural foi que percebeu como sua tentativa de branqueamento era absurda. Segundo ela, ser negro, ser uma mulher negra não tem a ver apenas com cabelo, mas sim com o histórico pessoal e daqueles que o cercam em sua vivência como negros, com todos os traumas, rejeições, estereótipos e violência.

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Dolezal também é famosa por seus penteados afro

Acusaram Dolezal de praticar blackface.

O que me levou a pensar sobre a apropriação da cultura negra como produto de consumo.

Durante décadas, pessoas negras têm influenciado a cultura americana, principalmente na indústria do entretenimento (as influências na Ciência e em outras áreas sempre foram menos visíveis). Na música, no cinema, na televisão. E durante décadas, houve as versões de artistas mais palatáveis ao gosto do público médio branco. Pelo menos, desde os anos 1940, vemos artistas americanos brancos agindo como se fossem negros. Esse foi e continua sendo uma forma menos óbvia de blackface. Por mais que apreciemos alguns desses artistas brancos essa é a verdade.

Aqui no Brasil, isso também acontece. Sou de Salvador. E uma coisa que sempre me irritou foi o título de Daniela Mercury como “a branquinha mais neguinha da Bahia”. A expressão saindo inclusive da boca da própria artista. É muito fácil se apropriar da cultura negra e não levar o racismo a tiracolo.

O problema do caso Dolezal não é uma mulher branca lutar pelos direitos dos negros. Mas ter criado uma farsa para atingir seu objetivo, por mais nobre que seja (e eu tenho minhas dúvidas de que seus motivos sejam tão nobres). Sua atitude é uma ofensa, principalmente, às mulheres negras americanas. A maioria carrega um histórico de abuso, preconceito e violências sofridos, num país declaradamente racista.

CAPA DO MEU PRIMEIRO ROMANCE

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Aqui está a capa definitiva do meu primeiro romance. Uma história juvenil que mistura magia, ciência, drama, comédia e ação. A capa foi criada por Rochett Tavares sobre ilustração da artista Balanuts. O romance será lançado em agosto. Eis a sinopse:

Conheçam Lottar Gan Amon, um menino negro de nove anos, filho de uma feiticeira e de um devorador de almas. Lottar vive num país onde ciência e magia convivem numa relação tensa. Num período de guerra, com seu pai desaparecido no front, nosso protagonista tenta sobreviver com a mãe a tempos difíceis. Ele acaba descobrindo que o jardim mágico de sua família pode guardar a chave de um poderoso segredo.

Este é um romance juvenil para todas as idades, que procura não subestimar os jovens, na tradição de Philip Pullman, Terry Pratchett, Diana Wynne Jones, L. Frank Baum e Ursula K. Le Guin.

A REVOLTA DE SEU JOSÉ

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Minha intenção foi bater perna por aí, ir adiante quase sem rumo, não planejar muito as coisas. Viajei sozinho para ver e ouvir melhor. Foram duas semanas de andanças pelo interior da Bahia, entre setembro e outubro de 2007. Uma temporada em que esqueci um pouco quem eu sou me rendi à vivência de outros.

O livro de viagens “Homem com Mochila” foi publicado em 2008. O texto abaixo é um dos capítulos do livro.

A REVOLTA DE SEU JOSÉ

“Como o senhor se chama?”

“José.”

“José de quê?”

“José de Souza.”

O homem na poltrona vizinha se mostra disposto a tornar a viagem menos maçante. Não levo comigo nenhum aparelho de mp3 nem a paisagem me interessa. É uma repetição de cenas que já conheço: o sol inclemente castigando a terra seca, pós-apocalíptica.

O ônibus está lotado, inclusive com algumas pessoas em pé. Mas ninguém reclama. As viagens são curtas, rumo a povoados e municípios próximos de Vitória da Conquista. O ônibus não é dos melhores, mas está inteiro. Por não existir concorrência em boa parte dos trajetos que faz, a empresa se acha no direito de prestar um péssimo serviço aos seus passageiros.

“A vida não é brincadeira não. A gente dá um duro danado pra, no final, dá só um pouquinho”, diz seu José, me olhando com firmeza. Os olhos ternos dão mais gravidade às suas palavras.

Ele tem 60 anos. Foi agricultor quase a vida toda. As mãos calejadas comprovam isso. Assim como as dores nas costas e no joelho direito, que o levam todo mês do município de Caraíbas, onde mora com a mulher e dois filhos, a Vitória da Conquista; um trajeto de 65 km.

“A verdade é que a médica disse que eu tinha de fazer fisioterapia duas vezes por semana… Mas me diga como, meu amigo? Como eu faço essa mágica? Dois ônibus pra ir, dois pra voltar… toda semana.”

O filho que vive em São Paulo, dono de uma pequena lanchonete em Jundiaí, paga seu plano de saúde.

A seca em 2007 foi uma das piores dos últimos anos. Em alguns municípios baianos, não choveu por oito meses ou mais. Principalmente no norte, nordeste e sudoeste do estado. O governo federal, auxiliado pelo Exército, pôs em prática ações de abastecimento de água e distribuição de cestas básicas na maioria dos estados do Nordeste. No mês de setembro, o governador Jacques Wagner declarou situação de emergência em 90 municípios baianos.

“Nunca precisei da caridade de ninguém. Sempre o que tive, tive com o suor do meu trabalho. Isso é desde molequinho. Meu pai era um bicho perverso danado, mas ele respeitava trabalhador.”

Para seu José, tanto os eleitores como os governos são culpados, igualmente, pela pobreza do povo, pela falta de perspectivas:

“Prefeito, governador, presidente, tudo uma decepção. Mas o povo também é besta. O problema é que ninguém pensa pra frente. Só quer saber do agora. Aí o cidadão vota por qualquer agradozinho. E o político para a obra do outro pra começar a sua. E a gente fica nisso a vida inteira.”

A seca também o atingiu. Ele perdeu plantações de feijão e milho. Seu alento foram as criações de galinhas e de cabras. E alguns serviços gerais, principalmente, como pedreiro e eletricista.

“Aprendi tudo em São Paulo.”

Segundo ele, ter ido para lá, há mais de trinta anos, foi, ao mesmo tempo, sua fortuna e desgraça:

“Muito trabalho, muita humilhação. Mas aprendi tudo o que eu sei. Assim, coisa que não é da roça…”

“E por que voltou pra Bahia?”

“Cansaço… Foi 8 anos.”

Voltaram ele, dois filhos e a mulher. O filho mais velho resolveu ficar.

“A seca tem jeito, seu José?”

Ele me garantiu que sim. E, para provar isso, começou a falar sobre sistemas de irrigação:

“A terra é boa, homem. O que falta é cuidado. Interesse dos político… Funciona assim: a gente aqui da região tem que puxar água do poço com bomba, de óleo diesel, ou na bateria, porque o lugar é acidentado, a plantação fica no alto. É um atraso. Coisa de antigamente. É tudo na mão, com mangueira. O ideal seria a irrigação de gotejamento. A água é levada de tubo até a raiz da planta. Fica pingando o tempo todo. É uma beleza. A gente economiza água e energia. Mas é um troço caro danado. Precisa de investimento. Mas cadê?”

Ele não tem mais tempo para completar a resposta, para eu ouvi-la. A viagem termina para mim, tenho de descer do ônibus.

MEUS LIVROS, CONTOS E POEMAS

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Romance:

Um Jardim de Maravilhas e Pesadelos (2015) SkoobGoodreads 

Não-Ficção:

Homem com Mochila (2018) Skoob, Goodreads

Poemas:

A Cor da Justiça é Negra

Querido Ovo Frito

Rick and Morty

O Desespero das Flores

Máquina do tempo made in China

Contos e noveletas:

Caos Tranquilo, coletânea Cyberpunk (Draco, 2019) Skoob, Goodreads

Óculos Escuros, coletânea A Sombra e o Medo (Engenho da Palavra, 2018) Skoob, Goodreads

Hocus Pocus High Tech, microcontos de ficção científica (2018) Goodreads

Wonder, revista Trasgo n°15 (2017) Skoob, Goodreads

Aynin Candé, revista Somnium nº113 (2017) Skoob, Goodreads

Videoclipe, selecionado pelo projeto Mapa da Palavra (2016) (versão em audiobook)

Raças, coletânea Estranha Bahia (EX! Editora, 2016; 2ª edição, 2019) Resenha 1Resenha 2, Resenha 3, SkoobGoodreads

Paisagem Manchada de Sol e Chuva, coletânea 1º Concurso Literário do Servidor Público do Estado da Bahia (Vento Leste, 2014)

A Decisão, coletânea The King vol.II (Multifoco, 2013) Skoob, Goodreads 

O Batuqueiro do Gran Circo Lodorov, conto classificatório para participar de oficina virtual, ministrada pelo jornalista e escritor José Castello (Portal Literal, 2007) 

O Diálogo1º lugar do concurso Exercícios Urbanos (Portal Literal, 2006)