CONTO MEU NA SOMNIUM

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A Somnium é a revista de ficção científica mais tradicional do país. Publicada on line pelo Clube de Leitores de Ficção Científica (CLFC), traz resenhas, notícias, artigos, relatos. Em cada número, são propostos temas para submissão de contos. Nomes de peso da FC nacional e da portuguesa já publicaram na revista. Saiu a lista dos autores selecionados para a edição n°113, cujos temas foram TRANS-HUMANISMO e WEIRD, e que será lançada em breve. Meu conto Aynin Candé, uma mistura cyberpunk, afrofuturismo e new weird, foi um dos escolhidos!! É uma honra estar ao lado de mestres como Carlos Orsi, Gerson Lodi-Ribeiro e Luiz Bras.

Sesstelo, de Carlos Orsi

Eutanásia, de David Machado

Quarteirão, de Fabio Barreto

Pantagruelicídio, de Frederico De Oliveira Toscano

Moça da Mão Perfeita, de Gerson Lodi-Ribeiro

Um Último Dia Perfeito, de Gilson Luis da Cunha

Loja de Peças, de Graham Brand (traduzido por Santiago Santos)

Utopia Pandemia, de Luiz Bras

Madeleines & Micro-ondas, de Paulo Elache

Aynin Candé, de Ricardo Santos

De trilhos enferrujados e cachorros mancos, de Santiago Santos

MAPA DA PALAVRA

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Fui selecionado para fazer parte do projeto Mapa da Palavra com o conto “Videoclipe”. É uma iniciativa do Governo da Bahia com o objetivo de fazer uma radiografia da produção cultural no estado. O bacana é que muitos autores do interior foram contemplados. Há muita poesia de qualidade rolando nas cidades baianas. Também fico feliz em ver tantos rostos diferentes. O site do Mapa foi lançado hoje na Flica, o Festival Literário de Cachoeira. Clique na imagem para ter acesso ao site.

PERSONAGEM, O ELEMENTO MAIS IMPORTANTE DA NARRATIVA PARTE 2

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COMPOSIÇÃO DO PERSONAGEM (CORPO E PERSONALIDADE)

Na PARTE 1, afirmamos que o foco dessa série é entender como construir personagens cativantes, numa perspectiva realista, sejam heróis, vilões ou secundários. Para despertar uma maior conexão emocional com o leitor, fazendo-o se importar com o elenco condutor da história. E estimulando o interesse pelo conto ou romance até a última linha.

Como mencionado anteriormente, PERSONAGEM é a soma de COMPOSIÇÃO (CORPO E PERSONALIDADE) + MOTIVAÇÃO (OBJETIVOS).

Aqui falaremos sobre COMPOSIÇÃO.

A COMPOSIÇÃO NÃO DEVE SER UMA DESCRIÇÃO EXAUSTIVA DE COMO O PERSONAGEM SE PARECE NEM DE COMO ELE PENSA E AGE.

Descrições sobre personagem que não deixam nenhum espaço para a imaginação do leitor são limitadoras, castradoras, desinteressantes. A principal vantagem da literatura, o seu maior fascínio, é justamente permitir que possamos completar em nossa cabeça como deve ser determinado personagem, a partir das informações apresentadas na narrativa.

EM LITERATURA, UM PERSONAGEM É VISTO DE MANEIRA DIFERENTE POR CADA LEITOR. NO CINEMA E NA TELEVISÃO, O PERSONAGEM SEMPRE TERÁ A MESMA IMAGEM.

Os leitores de As Crônicas de Gelo e Fogo, de George R.R. Martin, sempre tiveram suas próprias personificações de Tyrion, Jon Snow e Daennerys, a partir das descrições em cada livro. Com o surgimento da série de TV Game of Thrones, estes personagens ganharam versões em carne e osso. Muitos leitores ficaram decepcionados. As versões imaginadas por eles, em conjunto com o autor, eram menos convencionais, mais estimulantes.

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Na fantasia épica ou na space opera, o worldbuilding é um elemento bastante valorizado.  Criam-se universos originais, misturando novas ideias com referências consagradas. Para o leitor embarcar na atmosfera desses mundos ficcionais, para convencê-lo a acompanhar a jornada do autor, a descrição é algo necessário. O mesmo pode-se dizer sobre os personagens que habitam tais mundos. Portanto, a palavra de ouro no processo de revelar o personagem se chama EQUILÍBRIO.

NÃO DEVEMOS DIZER TUDO SOBRE O VISUAL E COMO FUNCIONA A MENTE DO PERSONAGEM. O LEITOR DEVE TIRAR SUAS PRÓPRIAS CONCLUSÕES.

A DESCRIÇÃO DO PERSONAGEM DEVE SER DINÂMICA, EM FUNÇÃO DA TRAMA E DA INTERAÇÃO COM O RESTO DO ELENCO.

EXEMPLO 1

– Fale comigo, espertinho – disse Max. – O que você acha que vai acontecer?
George não disse nada.
– Vou lhe dizer – disse Max. – Vamos matar um sueco. Você conhece um sueco enorme chamado Ole Anderson?
– Sim.
– Ele vem jantar todas as noites, não vem?
– Ele vem aqui às vezes.
– Ele vem às seis horas, não vem?
– Quando vem.
– Sabemos de tudo, espertinho – disse Max. Diga mais alguma coisa. Vai alguma vez ao cinema?
– De vez em quando.
– Você deve ir mais ao cinema. Os filmes são bons para um menino esperto como você.
– Por que vão matar o Ole Anderson? O que ele fez a vocês?
– Ele nunca teve chance para nos fazer qualquer coisa. Ele nem mesmo chegou a nos ver.
E ele só nos vai ver uma vez – disse Al, da cozinha.
– Então, por que vão matá-lo? – perguntou George.
– Nós o estamos matando para um amigo. É só um favor para um amigo, espertinho.
– Cale-se – disse Al, da cozinha. Você fala demais, maldito.
– Preciso entreter o espertinho. Não é espertinho?

(conto Os Assassinos, de Ernest Hemingway, tradução de L.F. Riesemberg)

Raimundo Carrero afirma, em Os Segredos da Ficção (Agir, 2005):

“(…) o autor mostra conhecimento e domínio do personagem, e faz com ele se movimente para permitir a completa interação com o leitor, adiantando ou esquecendo, de propósito, alguns detalhes. (…) Fica estabelecida uma espécie de parceria, que exige equilíbrio e tensão.” (pág.219)

“É na seleção que o escritor mostra a capacidade de contar e desenvolver a narrativa.” (pág.242)

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Podemos subdividir a COMPOSIÇÃO da seguinte maneira:

1)CORPO = TRAÇOS FÍSICOS + VESTIMENTAS + ACESSÓRIOS.

No que classificamos de corpo, são consideradas características mais genéricas do personagem (altura, peso, cor do cabelo e da pele), assim como características mais particulares (uma cicatriz, o jeito de andar e de falar). Além disso, temos as roupas, trajes, acessórios e armas utilizados; ou a falta deles.

David Lodge afirma, em A Arte da Ficção (L&PM, 2010):

“(…) Os romancistas modernos preferem que os fatos sobre os personagens venham à tona aos poucos, de diferentes formas, ou então que sejam depreendidos a partir de ações e falas. (…) Toda descrição ficcional é altamente seletiva.” (pág.77)

Lodge argumenta que essa seleção é necessária, pois senão o autor gastaria páginas e páginas descrevendo o físico e a psicologia dos personagens.

Ou seja, seria uma tortura para o leitor.

Lodge ainda diz que roupas e outros detalhes são ótimas maneiras de descrever uma personalidade:

“As roupas são sempre úteis para determinar o caráter, a classe social e o estilo de vida de um personagem. (…) A impressão é reforçada pelo modo de falar e de agir.” (pág.77)

O nível de detalhamento deve ter um propósito, não pode ser gratuito. As roupas de um personagem podem ser descritas com minúcia para o leitor ter mais informações sobre seu passado e presente. Se o tamanho das mãos do personagem ou alguma outra particularidade (calos, cicatrizes, arranhões) tiver uma função na trama, descreva. O que não for dito, será preenchido pela imaginação e especulações do leitor.

EXEMPLO 2

Naquela noite, alguém tinha pagado pela garrafa de uísque sobre a mesa. O melhor uísque que havia na casa. O que elevou bastante o ânimo de seu Costa.

Mesmo em seu estado lamentável, com os sentidos comprometidos, seu Costa pôde observar melhor a figura à sua frente. Os dois estavam num canto do bar, em lados opostos da mesa.

O homem tinha um rabo de cavalo, usava gravata, colete e um terno bem cortado, e apoiava a mão numa elegante bengala de jacarandá.

O estranho era que o homem parecia relativamente jovem para precisar daquele auxílio. E ele não demonstrava ter defeito físico nenhum.

Ao contrário de seu Costa, que tinha mais dificuldade para domar a perna mecânica quando estava bêbado.

Seu Costa concluiu que a bengala fazia parte do figurino de habitante da Capital, de membro de sua elite.

O veterano não tinha muito apreço por aquele tipo de gente, por considerá-los causadores de guerras, aproveitadores que ganhavam dinheiro enquanto soldados perdiam suas vidas. Ele também não entedia o que um cavalheiro fazia num lugar frequentado por trabalhadores. Mas o trataria muito bem. Estava adorando o fato de um desses desgraçados lhe pagar um bom uísque.

(romance Um Jardim de Maravilhas e Pesadelos, de Ricardo Santos)

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2)PERSONALIDADE  = HISTÓRIA PESSOAL + NOME + VISÃO DE MUNDO (PENSAMENTO) + AÇÃO.

Assim como uma pessoa real, um personagem deve ter um passado. A extensão desse passado vai depender da importância do personagem na narrativa. Protagonistas e coadjuvantes de peso merecem mais atenção neste aspecto do que um figurante. E é esse passado que irá proporcionar uma história pessoal ao personagem, a ponto de dar a ele uma maneira de enxergar a vida e os outros, ou seja, uma visão de mundo, que o motiva a agir.

O passado de um personagem pode ser desenvolvido num texto, em forma de resumo (principais acontecimentos de sua vida), ou por tópicos (nascimento, infância, juventude…). Nada exaustivo, algo entre 50 e 500 palavras.

Dar nomes aos personagens é uma das funções mais difíceis e importantes do autor. Um nome certeiro é fundamental para tornar um personagem inesquecível. Um nome equivocado pode enfraquecê-lo ou até mesmo arruiná-lo. Claro que falamos do tipo de ficção que conhecer o nome das pessoas, dos seres é praticamente uma obrigação. O autor é livre para fazer o que bem entender com seus personagens, inclusive, nomeá-los apenas com iniciais, identificá-los pela profissão ou papel social, ou mesmo não nomeá-los. Muitos autores escreveram brilhantes narrativas nomeando seus personagens de maneira menos convencional. Mas, em nosso caso, nomes realistas contam e muito.

Diz Carrero, em Os Segredos da Ficção:

“Encontrar um nome correto e justo para o personagem deve se tornar uma obsessão. Às vezes, o personagem impressiona somente pelo nome. Se Capitu fosse apenas Capitulina, não geraria a empatia. Capitu é já um mistério em si mesma, uma graça, um enigma. (…) O próprio Dom Casmurro derrota Bentinho. Dez a zero. Não tem nem graça.” (pág.194)

A DESCRIÇÃO DE UM PERSONAGEM PODE E DEVE VARIAR DE ACORDO COM OUTROS PONTOS DE VISTA.

No livro Characters, Emotion & Viewpoint (Writer´s Digest Book, 2005), Nancy Kress aborda, no capítulo 2, na seção Through other eyes: dressing secondary characters, como um personagem pode ser descrito de maneira vívida e variada, a depender de quem estiver observando. Essa é uma das vantagens da técnica do ponto de vista, também conhecida como point of view (POV), muito usada em roteiros de cinema. Ao invés de o leitor saber sobre um personagem por um narrador onisciente e com uma voz invariável, podemos ter informações e impressões desse personagem por mais de um ponto de vista. Com certeza, cada observador terá algo diferente para contar sobre esse personagem, seja sobre sua aparência ou personalidade. E não é só isso. Por tabela, o leitor também aprenderá mais sobre o observador, enquanto ele descreve o personagem.

EXEMPLO 3

Lá está ela, pensa Willie Bass, com quem cruza algumas vezes pela manhã, mais ou menos neste lugar. A velha beldade, a velha hippie, com os cabelos ainda compridos e desafiadoramente grisalhos, dando suas voltas matinais de jeans e camisa de algodão masculina, e um tipo qualquer de sapatos leves étnicos (Índia? América Central?) nos pés. Ainda possui uma certa atração sexual, uma espécie de encanto boêmio, de bruxa boa. Contudo, nesta manhã, ela tem um aspecto trágico, ali parada, tão ereta, com sua camisa larga e os seus sapatos exóticos, resistindo à força da gravidade, uma fêmea de mamute já enterrada até os joelhos no pixe, descansando um momento entre esforços, volumosa e altiva, quase indiferente, fingindo contemplar os tenros pastos que esperam na margem oposta, mas começando, na realidade, a ter a certeza de que ainda estará ali, presa na armadilha e solitária, depois de escurecer, quando os chacais aparecerem. Ela aguarda pacientemente que venha a luz.

(romance As Horas, de Michael Cunningham, tradução de Fernanda Pinto Rodrigues, adaptada para o português brasileiro)

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O personagem precisa respirar, mostrar-se vivo, tridimensional, de acordo com sua participação na trama. Portanto, os personagens devem aparecer muito mais do que o autor.

Como ainda fala Carrero, em Os Segredos da Ficção:

“O AUTOR NÃO DIZ, NARRA.” (pág.219)

“Em geral, usamos o próprio personagem como narrador dissimulado ou o narrador oculto que cuida de bordar os furos da narração (…).” (pág.219)

“(…) quem tem estilo é o personagem. Embora precise, é óbvio, da visão do narrador oculto que se ampara e se esconde nos personagens.” (pág.229)

Saber o que selecionar e como descrever as características físicas e a personalidade dos condutores da trama é fundamental para estimular a imaginação do leitor e conquistar sua atenção.

Na PARTE 3, falaremos sobre A MOTIVAÇÃO DO PERSONAGEM, o que o leva a agir.

LUKE CAGE É UM MANIFESTO NEGRO E POP

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O verdadeiro poder da série Luke Cage é mostrar como a cultura pop pode abordar temas relevantes de uma maneira acessível. Muitas vezes, uma metáfora pode quebrar barreiras e estimular o debate com uma eficácia impressionante. A ficção pode mostrar um contexto mais coerente e articulado sobre a realidade, questionando mitos e preconceitos, levando as pessoas a refletir sobre o que realmente importa. A série faz isso, sem ser leviana nem pesar a mão.

Vemos aqui uma celebração da cultura negra num formato de série de super-herói. É a técnica do contrabando de que fala Martin Scorsese sobre os filmes noir dos anos 40 e 50. Filmes policiais e de suspense na superfície, mas que continham um rico subtexto sobre a natureza humana. Era um recurso que diretores subversivos usavam para escapar da censura e conquistar uma maior audiência. O mesmo foi feito nas séries do Demolidor, ao discutir os limites da justiça, e em Jessica Jones, sobre os papéis da mulher numa sociedade patriarcal. Em Luke Cage, a abordagem foca na questão da negritude, de como é ser negro num mundo racista.

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O criador da série, Cheo Hodari Coker, teve a benção da Marvel para mostrar sua visão, mas seguindo certas regras. Mesmo assim, ele conseguiu realizar a produção mais adulta da Marvel até agora. Usou sua experiência de ex-jornalista musical, roteirista e produtor de séries como Southland e Ray Donovan para tornar Luke Cage em algo vibrante e autêntico. O cara é negro e sabe do que está falando. Música, literatura, esportes, História, tudo isso faz do Harlem um personagem tão importante quanto o resto do elenco. Um personagem que merece que alguém lute por ele, o defenda.

Luke Cage tem um nível de produção que empolga mais do que decepciona. A ação pode não ser tão coreografada como na série do Demolidor. Mas, em seus melhores momentos, vemos lutas com energia, divertidas e brutais. O recurso do flashback é utilizado de uma maneira mais orgânica do que em Demolidor e Jessica Jones. O ponto alto é o quarto episódio, no qual conhecemos a origem do herói. É uma das melhores coisas que a Marvel já fez.

A série tem alguns dos diálogos mais afiados da TV ou do cinema americano recente. Por outro lado, o roteiro peca por sua falta de foco, conduzindo uma trama mínima por um tempo além do necessário. O que só deixa mais evidente os furos, as incoerências e as coincidências forçadas. Poderiam muito bem ter resumido a série em dez episódios, amarrando melhor as motivações dos personagens, sem prejudicar o desenvolvimento deles.

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E justamente os personagens são a grande atração. Temos atrizes e atores em excelentes performances. Mike Colter se estabeleceu de vez como um herói carismático, alternando vulnerabilidade e força. Os vilões são convincentes, charmosos e ameaçadores, algo muito raro no MCU. Mas a atenção mesmo vai para as personagens femininas. Aliadas ou adversárias, em papéis menores ou maiores, mostram como é um mundo comandado por mulheres negras. Mulheres tantas vezes vistas em Hollywood como figuras de terceira, quarta categoria. Destaque especial para a Misty Knight de Simone Missick, em sua determinação e fúria, e a Mariah Dillard de Alfre Woodard, com sua vilania em camadas, tão reconhecível em nosso cotidiano.

A Marvel está de parabéns por bancar uma série tão cheia de atitude, em colocar o dedo numa ferida tão dolorosa. Luke Cage é um poderoso manifesto pop. Como um rap que diz a real entre uma batida e outra.

Luke Cage, criada por Cheo Hodari Coker, 13 episódios (disponível na Netflix), Marvel Television/ABC Studios.

AVALIAÇÃO: RUIM, REGULAR, BOM, MUITO BOM, EXCELENTE