Nos próximos dias, será lançado na Amazon um conto de fantasia heroica, de espada e feitiçaria ou sword and soul, como queiram. Quenai dul Muni é uma guerreira solitária num mundo povoado por magos, feiticeiras, reis, imperatrizes, máquinas e seres fantásticos. Tendo em mãos sua espada mágica Grito da Lua, ela enfrenta ameaças humanas e sobrenaturais. Esta é a primeira aventura de uma série que pretende ser, ao mesmo tempo, uma homenagem e uma crítica ao subgênero, inspirada em mestras e mestres como Robert E. Howard, Tanith Lee, Michael Moorcock, Charles R. Saunders e C.L. Moore.
Leiam o início do conto:
Podia ser a fome. O frio. Os primeiros raios de sol. A chuva. A vontade de urinar. Geralmente, uma perturbação dessas isolada, ou uma combinação de duas, três ou todas juntas. Mas também podia ser uma perturbação mais ameaçadora, fatal. Uma sorrateira cobra-colar, que se aproximaria enquanto estivesse deitada a céu aberto, e se envolveria em seu pescoço, tão ágil quanto o saque de uma espada, para sufocá-la com a pressão do corpo delgado e as escamas abertas, pontudas, venenosas. Ou um bando de hienas-amarelas, que aguardariam com paciência até que pegasse no mais profundo dos sonos, então avançariam, entre as muitas pedras que cobriam a planície de Jara, para atacar, despedaçá-la e devorar sua carne.
Porém, havia uma perturbação ainda mais fatal. De outra natureza, ao mesmo tempo, tão próxima e tão distante de Quenai.
Nessa hora, Grito da Lua não poderia ajudar, além de oferecer a lâmina eternamente afiada. Quenai teria de sobreviver sozinha.
Ela ouviu algo. Abriu os olhos. Sentia fome, um pouco de sede. Ao ar livre, nunca dormia completamente saciada, satisfeita. O vazio no estômago não permitia que adormecesse de verdade, que sonhasse. O descanso era uma imitação de sono. Precisava estar pronta para qualquer ameaça.
Ficou alerta, mas não se mexeu. Continuou deitada de lado, sobre a manta espessa de algodão, coberta por sua pele de cabra. A manhã ainda estava fria e cinzenta.
Apertou os dentes e os lábios grossos. Começar o dia dessa maneira, agitado, a deixava possessa.
Ao redor, a vegetação era baixa, misturando tons verdes, amarelos e marrons, com poucas árvores finas. O que tornava aquele lugar único eram as formações de pedras escuras de vários tamanhos, espalhadas em todo o campo aberto. Pareciam jarros enormes. Diziam as lendas que, milênios antes, o extinto povo jara dominava aquelas terras. E que as formações de pedra eram crematórios, onde os mortos se tornavam pó, em rituais fúnebres em louvor ao deus Cra, o Lanceiro da Morte.
Quenai podia ver com nitidez, na altura do chão, mas ainda assim sua visão estava limitada. No início da noite anterior, ela sabia que tinha de parar a viagem. Aliás, viagem que nem devia ter começado. Já era tarde quando partira. Onde estava com a cabeça para se meter numa situação de perigo tão evitável? A falta de dinheiro era a resposta óbvia. Contudo, a melancolia que a dominou, em seus últimos dias numa cidade grande, com certeza, tinha contribuído para afetar-lhe o raciocínio. Não era nada inteligente ficar vagando por aquela planície, à noite. Então ela procurou um local estratégico para descansar sua espada, comer um pouco e dormir. Queria se proteger das ameaças potenciais. Tinha de fazer escolhas. Preferiu repousar num trecho onde os jarros estavam mais distantes uns dos outros. Isso evitaria uma aproximação surpresa de hienas-amarelas. Num trecho onde os jarros estivessem mais próximos, Quenai melhor camuflada aos olhos de viajantes, as feras de pelos longos e eriçados nas costas podiam, pelo alto das pedras, cair sobre seu corpo. Em campo aberto, era mais fácil percebê-las. Para afugentá-las, usaria um apito de madeira com partes móveis. A peça gerava sons desagradáveis para vários tipos de animais e imitações do urro de predadores. Caso as feras insistissem em cercá-la, ela faria fogo e um círculo de chamas à sua volta. E em último caso, o enfretamento. Mas, nas poucas vezes que estivera ali, à noite, o apito bastou. Contra o avanço de cobras-colar, contava apenas com a agilidade de sua adaga. Em relação à gente, a coisa era mais imprevisível.
Com os ouvidos atentos e o nariz apurado, Quenai percebeu uma inquietação no ar e nenhum fedor. Entre grilos-de-veludo próximos e corvos-azuis ao longe, não havia a presença de cavalos nem de cães ou lobos de caça. Isso foi bem fácil de deduzir. Mais difícil foi estabelecer a posição de quem a espreitava.
Não era um estranho solitário. Havia mais alguém. Quantos seriam ao todo, três, quatro desgraçados?
Por que não lançaram uma flecha, uma machadinha ou uma adaga, perfurando a pele de cabra, atingindo-lhe a perna ou o torso? Estariam apenas esperando a reação dela? Ou não teriam tais armas, guardando as espadas para o ataque a curta distância? Ou queriam preservá-la para o estupro, a servidão, para ser vendida como escrava nas cidades da Costa de Marfus? Ou eram apenas burros, incompetentes, covardes?
Essa incerteza deixava Quenai inquieta. Mas ela não podia se mexer. Ainda não.
Estava pronta para a luta. Completamente vestida, botas calçadas. O cinturão com bolsos firme. A adaga de lâmina curva dentro da bainha de couro liso, à disposição, no quadril direito. E Grito da Lua estava bem à sua frente, deitada com ela, guardada em sua bainha de couro trabalhado.
O silêncio da espada era a certeza de que se tratava de uma ameaça humana. Se a ameaça fosse além de sua compreensão, mística de alguma forma, Grito da Lua se manifestaria.
Agora Quenai contava apenas com suas habilidades de combate. Mas fazia quase duas semanas que não lutava com ninguém. Nem mesmo para treinamento. O serviço de escolta da filha de um comerciante da cidade de Carná, uma noiva prometida a outro comerciante da cidade vizinha de Arbaque, não fora exigente. E o bom pagamento a deixou um tanto mole, com muita comida para estufar a barriga, muitas horas de sono numa cama aconchegante de estalagem, e sexo com um ou outro habitante daquela região do Império de Boro ou algum forasteiro, que aceitaram seus convites para beber; e ela sempre tomando uma dose de poção seca para não engravidar. Quando o dinheiro acabou, quando o ânimo acabou, achou melhor voltar para a estrada.
Não tinha nenhuma esperança de que aqueles à sua espera não passassem de viajantes perdidos, desorientados, talvez feridos ou bêbados. Gente assim não costumava se aproximar, na surdina, de estranhos dormindo ao ar livre. Iriam para o lado oposto, para longe, ou gritariam por ajuda. Ao contrário de bandidos, arruaceiros, soldados, guerreiros e mercenários, laia pior do que qualquer bando de hienas-amarelas estudando sua presa.
“Ei, você! Não temos o dia todo!”, disse uma voz de mulher, em bor, a língua comum.