SUSPIRIA, FAZER DE NOVO NEM SEMPRE É REPETIR

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Nem sempre um remake é uma perda de tempo, um crime contra a obra original. Suspiria, de 1977, é um clássico do terror italiano, do giallo, o filme mais celebrado do mestre Dario Argento. Em 2018, o também italiano Luca Guadagnino, diretor do aclamado Me chame pelo seu nome, lançou uma nova versão de Suspiria. No final das contas, Guadagnino se saiu muito bem da enrascada em que se meteu. Justamente por ter sido infiel à obra original.

A premissa é a mesma. Uma estudante de balé americana vai para uma prestigiada academia na Alemanha e coisas bizarras começam a acontecer.

O filme de Argento é famoso por sua atmosfera arrepiante e estilosa. Pelo uso de cores primárias, principalmente o vermelho, na direção de arte e fotografia e pela trilha sonora com um rock progressivo, ao mesmo tempo, feérico e macabro. O roteiro é bastante básico e as atuações apenas satisfatórias.

A maior crítica que se pode fazer ao filme (e ao giallo em geral) é o seu sadismo contra as mulheres, pela maneira como morrem, assassinadas violentamente por mãos masculinas, além de mostrá-las como frágeis ou megeras, de maneira bidimensional. E tudo isso mesmo tendo uma protagonista feminina.

Já no remake, há um feminismo muito presente, inclusive, sem a preocupação de mostrar as mulheres como simpáticas. As personagens do novo filme metem medo porque elas têm plena consciência de seu poder. Aqui os homens são os inimigos, os fracos.

Guadagnino foi ambicioso ao ampliar o contexto desse remake. Assim como no original, ele se passa na Alemanha Ocidental da década 1970. Mas Guadagnino procura discutir traumas políticos do passado, relacionados à Segunda Guerra Mundial, e daquele presente, por meio da tensão social causada pelas ações da organização Fração do Exército Vermelho (RAF), mais conhecida como Grupo Baader-Meinhof. Ao invés de tirar o espectador da trama, essas preocupações extras aprofundam a experiência, porque o passado das mulheres da academia de balé tem a ver com repressão e perseguição ao longo da História, contra a plena liberdade delas.

Esteticamente, o remake envolve e assusta. Não se parece em nada com a ambientação estilizada do Suspiria de Argento, artificial, criada em estúdio. E sim com os filmes alemães do período, de cineastas como Fassbinder, Wenders, Herzog, von Trotta e outros. As cores são lavadas e os cenários, sóbrios, realistas.

O Suspiria de Argento fascina pelo clima de delírio, pelo simbólico sobre o subterrâneo da condição humana. E o remake seduz pelo grotesco mais visceral, uma metáfora da condição da mulher contemporânea. Mostra uma crueldade feminina implacável. Porque, mesmo no grotesco, há sabedoria, beleza e libertação.

Como bônus, Tilda Swinton arrasa em dois papeis completamente diferentes, pelo menos.

Suspiria (1977), de Dario Argento, 98 min., Seda Spettacoli 

AVALIAÇÃO: RUIM, REGULAR, BOM, MUITO BOM, EXCELENTE

Suspiria (2018), de Luca Guadagnino, 153 min., K Period Media e outros

AVALIAÇÃO: RUIM, REGULAR, BOM, MUITO BOM, EXCELENTE

LEIA O 1º CAPÍTULO DA NOVELETA “CAOS TRANQUILO”

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Participo da coletânea Cyberpunk com a noveleta Caos Tranquilo. Uma história que mistura perseguição em carros velozes pelas ruas de Salvador e momentos introspectivos da protagonista, uma ex-militar, com seus dilemas morais. É uma trama ágil, mas que também faz pensar sobre o estado das coisas. Para saber mais, clique na imagem.

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Zima queria tirar logo as informações de sua cabeça e incendiar a Rede.

O bunker de MC costumava ficar pouco iluminado. O foco de luz voltado para a mesa larga de escritório. Os três monitores pareciam pequenas TVs quadradas, um do lado do outro. O teclado era todo remendado com adesivos coloridos. A mesa estava cheia de papéis, livros técnicos, manuais, canetas, disquetes e embalagens de comida.

MC estava sentado numa cadeira giratória sebenta. Fazia frio, o ar-condicionado ruidoso operava bem. Mas ele não estava nem aí. Devidamente agasalhado e ouvindo heavy metal nas alturas em seu walkman.

A maior parte do cômodo estava vazia, na escuridão. MC só ocupava metade do espaço, como se fosse obrigado a respeitar algum tipo de fronteira. Os equipamentos ficavam bem próximos à parede do fundo. Em outro cômodo, havia várias CPUs espalhadas pelo chão. Cabos atravessavam a parede, por buracos mínimos, para chegar aos monitores. Do outro lado, fazia ainda mais frio. Zima já tinha ido até lá uma vez. O bunker era alimentado por um gato na rede elétrica. Um gerador ficava junto das CPUs, em caso de emergência.

Zima estava de pé, mais recuada, na penumbra, observando MC trabalhar. Qualquer um que o visse na rua nunca ia imaginar que aquele sujeito, com cara de garçom de churrascaria, era uma porra de gênio. Quando estava ali, ela nunca se cansava de pensar nisso, de rir disso.

MC pendurou os fones fininhos no pescoço, a música tocando. Afastou-se da mesa e girou a cadeira para encará-la.

“Pronta?”

“Sim.”

MC balançou a cabeça e apertou os lábios.

“Ok.”

Então se levantou. O walkman estava num bolso dianteiro do agasalho.

Ele foi até o frigobar e pegou uma garrafinha de Crush de laranja.

Virou-se para Zima.

“Aceita?”

“Vamos logo com isso, cara.”

Ele sorriu.

“Calma, Zi. A gente vai fazer História. Preciso tomar alguma coisa refrescante primeiro.”

“Nada de pílulas. Você não vai viajar hoje.”

“Sem problema.”

MC pegou um abridor de garrafa em cima do frigobar. A tampinha caiu no chão. Ele deu goladas generosas.

Depois voltou para sua cadeira e colocou a garrafinha pela metade na mesa.

“Vai deitar no chão mesmo?”

“Como sempre.”

“Desta vez, vai doer mais.”

“Não importa.”

MC torceu o rosto.

“Você é quem manda.”

Ele girou a cadeira e começou a teclar.

Zima tirou uma Glock, escondida sob a blusa, da frente da calça. Agachou-se. Colocou a arma no chão e se deitou. Usava uma blusa sem mangas. A pele negra dos braços e das mãos sentiu o frio do piso de concreto.

Ela poderia muito bem sentar em outra cadeira giratória que tinha ali no canto. Mas preferia o piso duro e desconfortável.

Enquanto MC fazia os últimos preparativos para a conexão, ela levou a mão ao seu chip de acesso, atrás da orelha. Seu cabelo sempre estava muito curto. O chip ficava visível o tempo todo. Certas pessoas achavam aquilo prático. Outras ficavam incomodadas.

“Let´s go”, MC disse.

Zima olhava para o teto.

Ela ouviu a cadeira girar, MC se levantar e pegar suas coisas. Estava acostumada. Nas mãos dele, com certeza, havia o cabo conector e a caixinha do mordedor de boxe com um Z escrito na tampa.

“Esse treco está limpo, certo?”

“Dei uma lavadinha.”

Ele riu, aproximando-se.

Ela não falou mais nada.

Então veio uma explosão.

Tudo ficou numa escuridão total. Os aparelhos pararam de funcionar.

Poeira e fumaça contaminaram o ambiente.

Zima ouviu um grito de MC.

Mesmo atordoada, ela se sentou no chão, ligeira. Procurou a Glock ao lado e apontou para frente.

Seu olho biônico foi automaticamente acionado.

O olho bom começou a lacrimejar.

Ela prendeu a respiração.

Tinham derrubado a porta. Ela ouvira o som de metal batendo no concreto.

Entraram. Passos apressados de botas.

Três leituras térmicas em preto e branco. Os invasores carregavam fuzis à altura do rosto, provavelmente, M4.

Zima não perdeu tempo. Deu três tiros. Todos na cabeça.

Gritos de dor. Corpos brancos no chão. Nenhum tiro disparado pelo inimigo.

Ela soltou o ar. Tossiu. Passou a mão no olho lacrimejante.

Ainda apontando a Glock, virou a cabeça para trás.

Captou a leitura do corpo branco de MC, deitado no chão. Além de manchas brancas ao redor, fontes de energia dos aparelhos ainda quentes.

Ele estava vivo, mas quase não se mexia. Ela não tinha como saber seu estado. Ele se mantinha em silêncio.

Ela voltou a encarar o que estava adiante.

Da parte dos invasores, nenhum movimento, nenhum gemido.

Ninguém mais surgiu na porta.

Zima foi precisa nos disparos, mas também teve sorte. A posição dos invasores ao entrar era desfavorável. A porta se encontrava do mesmo lado onde ela estava deitada. Executaram uma manobra maior, perdendo segundos na abordagem. Segundos preciosos.

Eles sabiam que ela tinha reativado seu olho biônico?

Pela eficiência dos tiros, ela imaginou que os invasores estavam sem qualquer proteção ou aparelho na cabeça. O ataque no escuro aumentou as suspeitas de que também tivessem olhos biônicos.

“Merda.”

Começava a fazer calor ali dentro. Mas para o ar-condicionado funcionar de novo, o gerador precisava ser ligado manualmente.

Até que ponto os desgraçados conheciam os detalhes do bunker?

A ansiedade deu lugar à fúria.

Zima procurava entender qual tinha sido seu erro, qual foi a besteira que fizera para conseguirem achá-la antes do previsto.