DESAFIADORA RENOVAÇÃO DA FANTASIA

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Com certeza, você nunca leu uma fantasia heroica, de espada e magia ou sword and soul como essa. Kai Ashante Wilson renova o subgênero, historicamente dominado por protagonistas viris e brutais, com algumas variações mais complexas (Elric, Kane, Geralt).

Em The Sorcerer of the Wildeeps temos Demane, um jovem feiticeiro, e Captain, o líder de um grupo de mercenários. Ambos são responsáveis pela escolta de uma caravana de mercadores. E secretamente são amantes. É uma relação bonita, de respeito e cuidado mútuos. Mas também de conflitos.

Os Wildeeps é uma terra misteriosa, envolvida em magia, que esconde terrores desconhecidos e mortais. Demane e Captain são contratados pelo chefe da caravana porque são semideuses. Por isso, são capazes de enfrentar perigos que a maioria sequer entende.

Nos anos 60, Michael Moorcock quis subverter o estereótipo do herói viril de Conan com seu Elric, um anti-herói fisicamente frágil, viciado em drogas mágicas, um pensador torturado. Moorcock também brincou com forma e conteúdo com tramas e personagens inspirados no surrealismo e psicodelia. Ashante Wilson leva essa subversão para outro nível. The Sorcerer… é uma história de fantasia sem nenhuma vergonha de se assumir como tal, mas também é literariamente desafiadora. A linguagem é outro personagem aqui. Uma mistura de coloquialismo, norma culta e poesia, entre o antigo e o contemporâneo. Não é uma leitura fácil. E infelizmente nem sempre dá certo. Essa experimentação funciona muito bem em certos trechos. Em outros, quebra o ritmo da trama, que já é bem básica. O registro não-linear e fragmentado às vezes cansa o leitor.

Os outros dois aspectos interessantes de The Sorcerer… são o worldbuilding e os personagens.

O mundo criado por Ashante Wilson é cheio de detalhes desconcertantes, reciclados de autores do passado com muita criatividade, mas também com seu toque de originalidade. Nomes como Charles R. Saunders, Fritz Leiber e George R. R. Martin vêm à cabeça. Muitos dos mistérios envolvendo lendas, costumes e criaturas desse universo ficam no ar, gerando especulações. A principal delas é que há um fundo de ficção científica nisso tudo (Oi, Gene Wolfe).

Os personagens são um show à parte. Em poucas páginas, Ashante Wilson consegue desenvolver um elenco rico de personagens negros com personalidades variadas e histórias de vida distintas. O grupo de mercenários em especial. A ressalva é que não há nenhuma mulher.

Outra decisão do autor que decepciona é terminar a relação de Demane e Captain em tragédia. É um final de impacto, porém, mais uma vez na ficção, um casal homossexual não termina bem.

Leitor de fantasia ou não vai encontrar nesse livro, apesar de seus problemas, uma história complexa, cativante e desafiadora.

The Sorcerer of the Wildeeps, de Kai Ashante Wilson, 224 págs., Tor

AVALIAÇÃO: RUIM, REGULAR, BOM, MUITO BOM, EXCELENTE

O HARVEYGATE E SEUS CÚMPLICES

'KILL BILL: VOLUME 1' FILM PREMIERE, LOS ANGELES, AMERICA - 29 SEP 2003

Estrelas e astros de Hollywood deixam aquela impressão de que estão acima de muita coisa, acima do bem e do mal, do que é ético e anti-ético, por causa da condição peculiar da indústria em que trabalham. Indústria essa que é uma mescla de poder econômico e simbólico, uma combinação praticamente perfeita entre dinheiro, glamour e imaginário popular.

Muita gente com poder de decisão em Hollywood acha que são deuses, que podem fazer de tudo sem medir as consequências. Principalmente, atingindo quem não tem poder nenhum e busca um sonho, qualquer que seja, não façamos aqui juízo de valor das vítimas. Então crianças e jovens, garotos e garotas, em nome do objetivo de fazer parte dessa indústria cheia de magia, submetem-se a todo tipo de humilhações e abusos.

O produtor Harvey Weinstein pensava que era deus. E agora ficou claro que deuses podem ser mortos. Mas o que dizer de seus cúmplices? O cineasta Quentin Tarantino tardiamente admitiu que sabia do comportamento monstruoso de Weinstein e que não fez muita coisa a respeito. Para piorar,  a atriz Mira Sorvino, que foi namorada de Tarantino, foi uma das vítimas de Weinstein.

Por outro lado, Brad Pitt, quando soube do assédio de Weinstein em cima da então namorada Gwyneth Paltrow, encostou o cara na parede durante uma festa e o ameaçou. O diretor e roteirista Kevin Smith (que, assim como Tarantino, deve a carreira a Weinstein) o criticou duramente, sentiu-se envergonhado e repassou o restante dos lucros de sua parceira com Weinstein para uma fundação de apoio a cineastas mulheres. Seth Rogen, por saber da fama de Weinstein, nunca quis trabalhar com ele.

Assédio em Hollywood é algo infelizmente muito antigo. Há notórios assediadores, como o cineasta Alfred Hitchock. Harvey Weinstein foi um dos maiores predadores da indústria do cinema, provavelmente o pior nas últimas décadas. Pelos vários depoimentos de suas vítimas, desde modelos e atrizes desconhecidas a estrelas como Angelina Jolie, percebe-se que seu assédio era algo fora comum, mesmo em Hollywood. Era sistemático e contava com uma rede de cúmplices. Os atores Matt Damon e Ben Affleck se viram no meio de um furação de críticas, com suspeitas de encobertar o comportamento de Weinstein e pela demora em se pronunciar. Ambos foram revelados, com sucesso de bilheteria e Oscars, no filme Gênio Indomável (1997), produzido por Weinstein.

Evidente que existe certa hipocrisia na condenação a Weinstein. A Academia do Oscar o expulsou, mas entre seus membros encontramos outros assediadores, inclusive, acusados e condenados pela Justiça, como Bill Cosby e Roman Polanski.  Entre os jovens atores, Casey Afleck é o nome mais comentado.

Mesmo assim o Harveygate é uma revolução. Assediadores estão perdendo seus empregos e poder no mundo do entretenimento. E essas denúncias estão inspirando vítimas de outras áreas a se levantar.

BLADE RUNNER 2049: OBRAS-PRIMAS NÃO NASCEM EM ÁRVORES

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Eu queria muito estar errado, mas infelizmente minhas previsões se confirmaram. A sequência de Blade Runner é um bom filme com um visual espetacular, mas inferior a outras produções recentes igualmente ambiciosas, como Mad Max – Estrada da Fúria e A Chegada, do próprio Denis Villeneuve.

Quando anunciaram que haveria uma continuação de Blade Runner, a reação de muitos foi de total descrédito. As lacunas do filme original não precisavam ser respondidas. Quer dizer, vamos ter em mente as muitas versões lançadas ao longo dos anos. A versão que foi para o cinema, em 1982, com a narração de Harrison Ford e o final feliz, mora no meu coração por ter sido a que mais revi, ainda em VHS, depois em DVD. A versão considerada por Ridley Scott como definitiva, The Final Cut, de 2007, também me agrada bastante por ser mais madura e subjetiva.

A melhor maneira de apreciar o filme de Villeneuve é ter visto as versões de 1982 e 2007, lido o romance que originou tudo, Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, de Philip K. Dick e ter visto os três curtas lançados antes da estreia do novo Blade Runner, que servem como prelúdios para contextualizar o que aconteceu em Los Angeles (e no mundo) entre 2019 e 2049.

O canadense Denis Villeneuve já se firmou como um dos diretores mais interessantes em atividade, um mestre. Alguém que tem um controle absurdo da mise-en-scène, que sabe deixar o espectador instigado, tenso e mesmerizado. Seus filmes são visualmente desafiadores e provocam a reflexão. Em Blade Runner 2049, um projeto cheio de expectativas e pressões, ele se saiu bem. Entregou uma produção de grande estúdio acima da média, corajosa em bancar uma narrativa mais lenta, em tratar de temas complexos sem muitas concessões.

Não me entendam mal. O filme é bonito e relevante. A fotografia do veterano Roger Deakins é quase indecente de tão esmerada, em tomadas fechadas e abertas, em cores quentes e frias. Os efeitos especiais e sonoros estão totalmente integrados a essa evolução do universo de Blade Runner, com um desenho de produção que soube repaginar o clima noir original para um mundo parte tecnologicamente mais avançado, parte mais apocalíptico. Ryan Gosling carrega o filme nas costas. Seu personagem tem um arco emocional de fundir a cabeça de qualquer um. E ele nos leva junto nessa jornada cheia de dor física e mental. O Deckard coroa de Harrison Ford está ótimo, numa performance muito superior ao Han Solo de O Despertar da Força. Robin Wright, como a chefe do personagem de Gosling na polícia, Ana de Armas, a namorada virtual dele, e Sylvia Hoeks, a braço direito do personagem de Jared Leto, também são presenças marcantes.

Mas o filme tem três problemas: o roteiro, a duração e a trilha sonora. Problemas graves que comprometem as ideias, a coesão e a estética de Blade Runner 2049.

O maior mérito do roteiro foi manter a coisa simples, não investir em grandes conspirações nem em preparar uma futura franquia. Algumas pontas ficam soltas para uma possível sequência, mas isso não compromete a trama. Hampton Fancher (um dos roteiristas do original) e Michael Green (roteirista do ótimo Logan, mas das bombas Lanterna Verde e Alien: Covenant) mantiveram o clima de filme policial, de investigação.

O roteiro aprofunda a questão dos replicantes. Temos aqui um cenário mais complexo e variado, em que temas como preconceito, identidade e escolha são mais urgentes do que no primeiro filme. Mas essa discussão para no meio do caminho pelos equívocos narrativos. Os personagens coadjuvantes são menos interessantes em comparação aos do primeiro filme. A entrada de K, o personagem de Gosling, na história, com a ótima participação de Dave Bautista, é muito conveniente. A subtrama envolvendo a doutora Stelline, a criadora de memórias, me incomodou bastante. Analisando em retrospectiva, não faz muito sentido. E o dilema de ser ou não ser humano foi melhor trabalhado recentemente no filme Ex-Machina e na série Westworld, por exemplo.

Para frustração dos fãs, o aspecto religioso do romance por meio do mercerismo, uma espécie de cristianismo midiático, não foi explorado. Mas talvez a semente tenha sido plantada para ser desenvolvida mais adiante.

Não tenho problema com filmes lentos e longos. Adoro Tarkosvky. Mas, em Blade Runner 2049, 163 minutos se mostraram excessivos. Em certos trechos, os diálogos estão menos inspirados ou o silêncio não causa tanto impacto visual e sonoro.

Depois que Villeneuve foi confirmado como diretor desse filme, fiquei curioso para ver como seu compositor de longa data, o islandês Jóhann Jóhannsson, trabalharia musicalmente o universo de Blade Runner, tendo a icônica trilha sonora de Vangelis para assombrá-lo. Fiquei imaginando o que Jóhannsson poderia criar depois da música assustadora de Sicario e do mistério e da estranheza de A Chegada. Mas, poucos meses antes da estreia, Jóhannsson abandonou o filme, numa história ainda não explicada direito. Então os produtores recorreram ao onipresente Hans Zimmer, às pressas. Ele e seu pupilo Benjamin Wallfisch (responsável pela trilha do novo IT) fizeram uma música que fica entre uma imitação de Vangelis e a trilha do Batman de Nolan, numa pegada eletrônica, investindo mais em sintetizadores. É uma trilha eficiente em seus melhores momentos e irritante em seus piores. Não é memorável. Esse filme precisava de uma trilha sonora memorável.

O Blade Runner de 1982 foi um raro momento do cinema, no qual misturaram sorte e competência para reunir um punhado de pessoas brilhantes na produção de uma obra-prima. Depois o próprio Ridley Scott não conseguiu fazer nada tão bom ou próximo disso.

Blade Runner 2049 mostrou sua razão de ser. O mundo é um lugar melhor com a existência desse filme. E abriu as portas de vez para uma franquia que agora ninguém mais vai torcer o nariz.

Blade Runner 2049, de Denis Villeneuve, 163 min., Warner Bros.

AVALIAÇÃO: RUIM, REGULAR, BOM, MUITO BOM, EXCELENTE

A SÉRIE AUBREY/MATURIN, UMA AVENTURA LITERÁRIA

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A série de livros Aubrey/Maturin se tornou minha nova paixão. Eu vi o filme Mestre dos Mares, com Russell Crowe e Paul Bettany, lá em 2003. Lembro de ter sido uma das minhas melhores experiências numa sala de cinema. O filme de Peter Weir tem um ritmo fantástico e personagens cativantes, mas peca por focar na ação, deixando de lado muita coisa das sutilezas dos personagens e do contexto da época. O roteiro foi baseado em alguns volumes da série escrita por Patrick O´Brian. Este é um tipo de material que seria melhor explorado numa série da HBO ou Netflix.

Mestre dos Mares, o livro, é a primeira aventura do capitão da marinha real britânica Jack Aubrey e de seu médico de bordo Stephen Maturin, durante as Guerras Napoleônicas, no século 19. Gosto de livros de aventura, clássicos e contemporâneos, ficção e não-ficção. Mas o que torna a série de O´Brian tão especial é seu caráter híbrido. O autor tem ambição literária sem perder de vista a diversão do leitor.

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Muitos identificam uma forte influência de Jane Austen em O´Brian. O que foi confirmado pelo próprio. E realmente essa influência é bem perceptível no humor cheio de ironia, nos comentários que os personagens fazem uns dos outros, na maneira como as regras sociais são determinantes (no caso, na hierarquia da marinha britânica da época), e no uso de cartas e diários como recursos para o leitor conhecer mais diretamente a personalidade de cada um.

O que logo chama atenção é a obsessiva pesquisa histórica, a marca registrada de O´Brian. Ela está em cada linha desses livros, mas a genialidade do autor permite que a pesquisa não se torne exagerada. Ela sempre está ali para funções narrativas. No início, os termos náuticos podem causar um baita estranhamento no leitor. Mas sua paciência será recompensada.

O worldbuilding aqui é fascinante. Aos poucos, dá para se familiarizar com alguns termos e condutas. Buscas na internet melhoram a compreensão do que acontece durante as batalhas navais. A autora de fantasia e FC Jo Walton é fã dos livros, justamente pela prosa imersiva de O´Brian, pela atmosfera da vida no mar e na marinha britânica, elaborada de maneira tão convincente. Para ela, o mundo criado na série não é muito diferente dos mundos alienígenas de C. J. Cherryh, por exemplo. Outro fã é Kim Stanley Robinson.

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Outro elemento de sucesso (para muitos o mais importante, como eu também acho) são os personagens. A começar pelos protagonistas. Jack Aubrey não é um machão típico. Ora ele é viril, capaz e confiante. Ora é patético, depressivo e vulgar. Um marinheiro desde garoto com um talento para o violino. Seu humor é impagável. Já o doutor Stephen Maturin é mais um tipo intelectual, interessado em Ciências Naturais e Política, e parceiro musical menos talentoso de Jack, quando toca seu violoncelo. Seu humor é mais irônico e seus insights sobre vários temas são deliciosos de acompanhar. Há também todo um elenco de personagens secundários riquíssimo e igualmente cativante. Por menor que seja a participação de cada um deles, ela nunca será rasa.

Outro destaque é a prosa de O´Brian. Sua linguagem é vívida, seus diálogos são marcantes, mesmo os mais inverossímeis e longos. Sua habilidade em mudar sutilmente o ponto de vista de um protagonista para outro protagonista ou para um coadjuvante, no intervalo de uma página ou mesmo em poucas linhas, é notável. Ele também é geralmente bem sucedido quando demora mais numa cena importante, detalhando-a melhor ou resolve mais rapidamente a cena seguinte, dando saltos no tempo, passando de uma sequência para outra em cortes quase cinematográficos, apesar do clima de literatura do século 19. Por isso, mesmo com a incompreensão dos termos náuticos, o ritmo do texto é preservado e, muitas vezes, é empolgante, pelo suspense ou pela ação.

 

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Mestre dos Mares foi publicado originalmente em 1969. A série é composta por 20 romances completos e um inacabado, este último publicado em 2004, após a morte de O´Brian em 2000. Por causa do filme, foram editados por aqui, pela Record, os seis primeiros livros e o décimo. Em 2015, a Record relançou Mestre dos Mares numa edição de bolso. Sem previsão de relançamento dos demais volumes, restam aos interessados os sebos. Há uma edição gringa em e-book de todos os livros com preços que alguns alguns acharão razoáveis, outros, caros. Recentemente adquiri em sebos todos os livros editados no Brasil: Mestre dos Mares (1° livro), O Capitão (2° livro), A Fragata Surprise (3° livro), Expedição à Ilha Maurício (4° livro), A Ilha da Desolação (5° livro), O Butim da Guerra (6° livro) e O Lado Mais Distante do Mundo (10° livro). Além de ter comprado as versões em e-book de The Surgeon´s Mate (7° livro), The Ionian Mission (8° livro) e Treason´s Harbour (9° livro). Já estou no terceiro volume e a série só melhora. Em Mestre dos Mares, quase não existe trama. Praticamente é uma sucessão de aventuras no mar. A partir de O Capitão, tudo se torna mais complexo, com tramas mais elaboradas. Recomenda-se a leitura na ordem de publicação. A série cobre um período de mais ou menos de 15 anos na vida dos protagonistas. Comparei as edições nacionais com trechos das edições em inglês e posso dizer que as traduções são muito competentes, com supervisão técnica e pouquíssimos erros de revisão.

A série Aubrey/Maturin é  muito especial por conseguir reunir, de maneira brilhante, apuro literário e divertimento.