Nas últimas semanas, a escritora e pesquisadora Lidia Zuin publicou, em sua coluna no UOL, um texto com o título Amazofuturismo e Cyberagreste: por uma nova ficção científica brasileira. A proposta sugere um interesse em mapear e refletir sobre os novos rumos da nossa produção de ficção científica.
Alguns dias depois, o escritor e jornalista baiano Alan de Sá publicou um texto no Medium, Estão inventando o Nordeste. De novo. Alan se mostrou indignado com o que ele chamou de “interpretação equivocada de símbolos regionais”, referindo-se ao Cyberagreste. Em seguida, publicou um segundo texto, Por que fazer o Nordeste sertãopunk?, no qual detalha a proposta dele e dos autores Alec Silva e Gabriele Diniz de um movimento literário feito “por mãos nordestinas” e que valorize a pluralidade etnocultural da região.
A discussão Sertãopunk contra Cyberagreste ganhou corpo e esquentou os ânimos. Surgiram outras análises, memes e todo tipo de comentários nas redes sociais.
Chego junto nesse debate, como baiano, organizador da coletânea Estranha Bahia, citada por Alan de Sá, e participante da coletânea Cyberpunk, recentemente lançada pela editora Draco. Vou tentar ser o mais breve e objetivo possível, procurando não repetir o que já foi exposto.
Vamo vê colé de mermo dessa polêmica.
Afinal, quem pode imaginar o Nordeste? Essa pergunta é fácil de responder: todo mundo. Todo mundo mesmo. Agora o difícil é saber como.
Ninguém é dono da verdade. O que é diferente de ter convicções. Nenhum nordestino, por mais vivência que tenha, por mais pesquisas que faça, nunca vai conseguir compreender tudo o que o Nordeste é de fato e representa. Mas, por outro lado, o ser nordestino traz uma percepção única dessa experiência de pertencimento. Eu não consigo desligar meu ser baiano. Em nenhuma parte do mundo, seja por meio de falas, comportamentos e ideias. Mas também não existe fórmula para ser isso ou aquilo. Qualquer ser humano sofre influências culturais, e, ao mesmo tempo, não abre mão de sua individualidade. O que inclusive acaba contrariando estereótipos.
Portanto, esse como imaginar o Nordeste é um processo de construção, de troca de experiências e de conhecimentos, de saber quando ouvir e quando falar. E quem vem de fora da região, até de outros países, está convidado a saber o que é ser baiano, pernambucano, potiguar, maranhense, alagoano, piauiense, sergipano, paraibano e cearense, desde que tenha o coração aberto e a mente atenta. Querer conhecer e valorizar o Nordeste, com a melhor das intenções, não basta. É preciso que haja também leitura sensível para imaginá-lo.
Num primeiro momento, as ilustrações do universo Cyberagreste, do gaúcho Vitor Wiedergrün, me impressionaram, sim, pela estranha mistura de cangaço e cyberpunk. Pelo casamento perfeito entre o traço detalhista e as cores chapadas, lembrando bastante a obra de Moebius. Esses cangaceiros ciborgues tinham uma presença. Eram bonitos de ver. Mas num segundo momento, comecei a refletir sobre o sentido daquelas imagens, que narrativa contavam. Porque toda imagem conta uma história, mesmo uma imagem isolada. Seja o punho fechado erguido no ar de um Pantera Negra ou uma saudação nazista.
O próprio Vitor afirmou em entrevista a Lídia Zuin: “Eu sempre gostei da cultura brasileira e achava estranho não ver nada dessa cultura em obras de ficção e fantasia. Com o tempo, comecei a pensar e imaginar algumas fusões e, logo de cara, pensei como seria o Brasil em um futuro cyberpunk. Fiz algumas pesquisas e uns esboços de vestimentas do sul e do nordeste, mas acabei optando por iniciar os desenhos voltados para o sertão cyberpunk, daí o surgimento da série Cyberagreste”. Andriolli Costa, em seu podcast Poranduba, contou mais sobre os bastidores da criação de Vitor.
No final das contas, aquelas imagens se mostraram para mim como uma obra limitadora, por apresentar um futuro ironicamente parado no tempo, como se não tivesse existido um Nordeste do século 20 e do século 21. Deu-se mais relevância à iconografia de uma tradição popular, deixando de lado seus desdobramentos sociais e políticos. É uma arte bonita, mas vazia de sentido, de algo plenamente consciente do seu lugar no mundo. É o que vejo como nordestino, nascido e criado em Salvador, alguém que morou muitos anos no interior da Bahia e já rodou o Nordeste. E é esse vazio que pode gerar indignação, revolta de quem está inserido nesse contexto. De quem é filho da terra. Ainda mais quando se dá protagonismo a essa representação que nos fala tão pouco.
No grupo do Facebook do Clube de Leitores de Ficção Científica (CLFC), a escritora Cláudia Dugim falou sobre a distinção entre agenciamento e representatividade: “Qualquer autor pode ser inclusivo e proporcionar representatividade a uma minoria, sendo ele parte ou não dessa minoria, mas o agenciamento é diferente. O peso identitário e o lugar de fala, fazem do protagonismo um ponto crucial na narrativa, sem ambos os protagonismos, de autoria e personagem, não há Afrofuturismo, assim como não há Sertãopunk”.
De fato, o agenciamento é mais urgente, seja para autores negros, nordestinos, LGBTQ+ e de outras minorias. Mesmo porque pode haver convergência entre esses agenciamentos. Afinal, ninguém nunca é uma coisa só.
A representatividade também é importante, “é a habilidade de ver o outro, de reconhecer o outro”, como fala Ian Fraser, em seu texto Um bicho complicado. Ele bate muito na tecla da empatia. Porque realmente sem empatia não há conversa. E essa conversa precisa acontecer. É angustiante demais não tê-la, viver num estado permanente de incompreensão e de violência física e simbólica. Essa angústia pode se tornar algo extremamente nocivo para todos. Um caminho sem volta para a cultura de um país, inclusive para a convivência no dia a dia.
A coisa que mais abomino é injustiça. O texto de Lídia Zuin é equivocado ao dar protagonismo ao Cyberagreste, mas o texto dela não se trata de um discurso de ódio. Por isso, não devia ser retaliado como tal. Ao mesmo tempo, a revolta de Alan de Sá é legítima. O tom do seu primeiro texto foi acertado? Como disse um amigo meu, sem a agrestia de Alan esse debate necessário talvez nem tivesse começado. Vale ressaltar que, quatro meses atrás, o professor Alexander Meireles da Silva já tinha feito uma análise sobre Amazofuturismo e Cyberagreste em seu canal Fantasticursos, tornando-se uma das referências do texto de Lídia.
Acredito na radicalidade política como uma forma de ter clareza de pensamento. Definir o que é direita e esquerda ainda é fundamental para sabermos que atores e ideias buscam de fato uma transformação social. “Diálogo não é conciliação”, como fala a escritora, socióloga e youtuber Sabrina Fernandes, no seu canal Teze Onze. Diálogo é, por exemplo, ouvir, debater e dividir espaço com as minorias, promovendo-se uma relação de igualdade para todos. Conciliar é apenas ocupar os espaços cedidos por aqueles que detêm o poder e querem mantê-lo. Foi a conciliação que nos colocou nesse buraco político atual.
Os escritores nordestinos de ficção científica, terror e fantasia precisam marcar território como um ato de afirmação. Contudo, também devem estar abertos a uma vontade de agregar. Sabemos que, para muita gente no Sudeste, nordestino é tudo baiano. Mas não devemos, por isso, achar que só há inimigos fora do Nordeste. Trata-se também de um processo pedagógico para aqueles dispostos a nos ouvir. Porque queremos falar. E vamos falar independente da permissão de quem quer que seja.
Crédito da imagem: Juarez Paraíso