Um poema para este 20 de Novembro, Dia da Consciência Negra. Dia de luto e luta.
A COR DA JUSTIÇA É NEGRA
1.
Coloco a cara
de menino
de adolescente
de homem
de velho
pra fora de casa, de manhã cedo
pra ir trabalhar
pra ir estudar
pra procurar emprego
carregando na carteira minha ansiedade.
O que será dessa vez?
Vão me deixar em paz hoje?
Vão me deixar tocar a vida como qualquer outro robô?
Vão me enxergar além da minha pele?
2.
Meu dever de professora é ensinar aos meus alunos o seguinte:
no Brasil, é a polícia quem decide
se você é negro ou não.
Branco sai, preto fica. Branco vive, preto morre.
O PREconceiTO não é apenas social, não é apenas contra quem é pobre
e se chama Silva, Santos ou Conceição.
3.
Minha família é miscigenada
tem gente de pele clara
de pele escura
com cabelo crespo e cabelo liso
narizes e bocas e rostos
quadrados, redondos, cilíndricos
gente que mora nos subúrbios
e nas torres da classe média.
Dizem que sou pardo (odeio essa expressão).
Então me pergunto:
eu sou negro?
Não sofro o mesmo racismo
que meus primos de pele escura
que andam o tempo todo com o pontinho vermelho na testa.
Mas há momentos em que eu sou o mais escuro,
o não-branco, o cara de lábios grossos e cabelo crespo.
Ninguém diz nada na sala.
4.
Quanto mais escura for minha pele,
pior será o julgamento.
Triste dizer, mas é simples assim.
Não importa se sou rico ou pobre.
A cor da minha pele sempre será assunto de debate.
Discutir meu caráter?
Não me faça gargalhar.
Vamos deixar isso pra depois.
5.
O que seria do Brasil sem as mulheres negras
que balançaram tantos mateus e foram estupradas
para gerar todos os josés e marias?
Por que uma mulher negra não pode ser Miss Brasil?
Pois a beleza não é o que você diz o que é a beleza
e sim o que está no mundo.
Por que uma mulher negra não pode ser astronauta?
Mae Jemison vai dar na sua cara.
6.
Não pense, cidadão,
não pensem, autoridades,
que já nasci bandido
só porque minha pele é preta.
Pensem nos meus ancestrais
(que talvez sejam seus também
mesmo que não façamos ideia de quem eles eram)
trazidos contra a vontade para o Brasil.
Durante a travessia infernal
não morreram
de escorbuto
de fome
de tantos açoites
de epidemias
não cometeram suicídio
não foram jogados ao mar, ainda vivos,
acorrentados a outros iguais por se tornarem um estorvo.
Chegaram aqui como mercadoria:
força braçal e moeda de troca.
Sofreram todo tipo de violência para gerar riqueza.
Depois foram libertados, a mando das potências industriais
para virar mão de obra barata.
Os negros libertos fundaram periferias, subúrbios e favelas.
Segregados pelos muros do racismo institucional.
O Estado, a iniciativa privada, os detentores do poder
sempre viram a população negra como um mal necessário.
Empregadas domésticas
babás
motoristas particulares
de ônibus
limpadores de banheiro
garis
operários da construção civil
policiais
soldados
eleitores
consumidores.
Que não se atrevam a sair de suas posições demarcadas.
Mesmo que exista uma grande revolta pela carência de tudo.
Sem saneamento para todos
sem boa educação
sem saúde eficaz
sem emprego decente.
Mas as forças de segurança
os tribunais
as cadeias
estão aí
para quem ousar abalar a ordem das coisas
para quem discordar dessa pax social.
7.
Atravesso a rua às pressas
de chinelo, boné e camiseta
atrasado para encontrar com minha namorada.
Uma senhora me olha apreensiva. Ela acha que vou assaltá-la?
Minha filhinha vai sozinha ao caixa da lanchonete comprar um sorvete.
Funcionários pensam que ela está ali para pedir comida, importunar os clientes.
Ocupamos uma aula na universidade
Falamos sobre o racismo na universidade
Mas era a universidade que deveria falar sobre o racismo de alunos e professores.
Somos chamados de vitimistas.
Numa noite fria, cubro a cabeça com o capuz do meu casaco.
Ando sozinho pelo meu bairro.
Uma viatura encosta
policiais me abordam.
Não sei se voltarei para casa
com minha dignidade intacta
ou a vida.
(Ricardo Santos)
Imagem: Pixabay