LEIA O 1º CAPÍTULO DA NOVELETA “CAOS TRANQUILO”

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Participo da coletânea Cyberpunk com a noveleta Caos Tranquilo. Uma história que mistura perseguição em carros velozes pelas ruas de Salvador e momentos introspectivos da protagonista, uma ex-militar, com seus dilemas morais. É uma trama ágil, mas que também faz pensar sobre o estado das coisas. Para saber mais, clique na imagem.

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Zima queria tirar logo as informações de sua cabeça e incendiar a Rede.

O bunker de MC costumava ficar pouco iluminado. O foco de luz voltado para a mesa larga de escritório. Os três monitores pareciam pequenas TVs quadradas, um do lado do outro. O teclado era todo remendado com adesivos coloridos. A mesa estava cheia de papéis, livros técnicos, manuais, canetas, disquetes e embalagens de comida.

MC estava sentado numa cadeira giratória sebenta. Fazia frio, o ar-condicionado ruidoso operava bem. Mas ele não estava nem aí. Devidamente agasalhado e ouvindo heavy metal nas alturas em seu walkman.

A maior parte do cômodo estava vazia, na escuridão. MC só ocupava metade do espaço, como se fosse obrigado a respeitar algum tipo de fronteira. Os equipamentos ficavam bem próximos à parede do fundo. Em outro cômodo, havia várias CPUs espalhadas pelo chão. Cabos atravessavam a parede, por buracos mínimos, para chegar aos monitores. Do outro lado, fazia ainda mais frio. Zima já tinha ido até lá uma vez. O bunker era alimentado por um gato na rede elétrica. Um gerador ficava junto das CPUs, em caso de emergência.

Zima estava de pé, mais recuada, na penumbra, observando MC trabalhar. Qualquer um que o visse na rua nunca ia imaginar que aquele sujeito, com cara de garçom de churrascaria, era uma porra de gênio. Quando estava ali, ela nunca se cansava de pensar nisso, de rir disso.

MC pendurou os fones fininhos no pescoço, a música tocando. Afastou-se da mesa e girou a cadeira para encará-la.

“Pronta?”

“Sim.”

MC balançou a cabeça e apertou os lábios.

“Ok.”

Então se levantou. O walkman estava num bolso dianteiro do agasalho.

Ele foi até o frigobar e pegou uma garrafinha de Crush de laranja.

Virou-se para Zima.

“Aceita?”

“Vamos logo com isso, cara.”

Ele sorriu.

“Calma, Zi. A gente vai fazer História. Preciso tomar alguma coisa refrescante primeiro.”

“Nada de pílulas. Você não vai viajar hoje.”

“Sem problema.”

MC pegou um abridor de garrafa em cima do frigobar. A tampinha caiu no chão. Ele deu goladas generosas.

Depois voltou para sua cadeira e colocou a garrafinha pela metade na mesa.

“Vai deitar no chão mesmo?”

“Como sempre.”

“Desta vez, vai doer mais.”

“Não importa.”

MC torceu o rosto.

“Você é quem manda.”

Ele girou a cadeira e começou a teclar.

Zima tirou uma Glock, escondida sob a blusa, da frente da calça. Agachou-se. Colocou a arma no chão e se deitou. Usava uma blusa sem mangas. A pele negra dos braços e das mãos sentiu o frio do piso de concreto.

Ela poderia muito bem sentar em outra cadeira giratória que tinha ali no canto. Mas preferia o piso duro e desconfortável.

Enquanto MC fazia os últimos preparativos para a conexão, ela levou a mão ao seu chip de acesso, atrás da orelha. Seu cabelo sempre estava muito curto. O chip ficava visível o tempo todo. Certas pessoas achavam aquilo prático. Outras ficavam incomodadas.

“Let´s go”, MC disse.

Zima olhava para o teto.

Ela ouviu a cadeira girar, MC se levantar e pegar suas coisas. Estava acostumada. Nas mãos dele, com certeza, havia o cabo conector e a caixinha do mordedor de boxe com um Z escrito na tampa.

“Esse treco está limpo, certo?”

“Dei uma lavadinha.”

Ele riu, aproximando-se.

Ela não falou mais nada.

Então veio uma explosão.

Tudo ficou numa escuridão total. Os aparelhos pararam de funcionar.

Poeira e fumaça contaminaram o ambiente.

Zima ouviu um grito de MC.

Mesmo atordoada, ela se sentou no chão, ligeira. Procurou a Glock ao lado e apontou para frente.

Seu olho biônico foi automaticamente acionado.

O olho bom começou a lacrimejar.

Ela prendeu a respiração.

Tinham derrubado a porta. Ela ouvira o som de metal batendo no concreto.

Entraram. Passos apressados de botas.

Três leituras térmicas em preto e branco. Os invasores carregavam fuzis à altura do rosto, provavelmente, M4.

Zima não perdeu tempo. Deu três tiros. Todos na cabeça.

Gritos de dor. Corpos brancos no chão. Nenhum tiro disparado pelo inimigo.

Ela soltou o ar. Tossiu. Passou a mão no olho lacrimejante.

Ainda apontando a Glock, virou a cabeça para trás.

Captou a leitura do corpo branco de MC, deitado no chão. Além de manchas brancas ao redor, fontes de energia dos aparelhos ainda quentes.

Ele estava vivo, mas quase não se mexia. Ela não tinha como saber seu estado. Ele se mantinha em silêncio.

Ela voltou a encarar o que estava adiante.

Da parte dos invasores, nenhum movimento, nenhum gemido.

Ninguém mais surgiu na porta.

Zima foi precisa nos disparos, mas também teve sorte. A posição dos invasores ao entrar era desfavorável. A porta se encontrava do mesmo lado onde ela estava deitada. Executaram uma manobra maior, perdendo segundos na abordagem. Segundos preciosos.

Eles sabiam que ela tinha reativado seu olho biônico?

Pela eficiência dos tiros, ela imaginou que os invasores estavam sem qualquer proteção ou aparelho na cabeça. O ataque no escuro aumentou as suspeitas de que também tivessem olhos biônicos.

“Merda.”

Começava a fazer calor ali dentro. Mas para o ar-condicionado funcionar de novo, o gerador precisava ser ligado manualmente.

Até que ponto os desgraçados conheciam os detalhes do bunker?

A ansiedade deu lugar à fúria.

Zima procurava entender qual tinha sido seu erro, qual foi a besteira que fizera para conseguirem achá-la antes do previsto.

EM BREVE

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Nos próximos dias, será lançado na Amazon um conto de fantasia heroica, de espada e feitiçaria ou sword and soul, como queiram. Quenai dul Muni é uma guerreira solitária num mundo povoado por magos, feiticeiras, reis, imperatrizes, máquinas e seres fantásticos. Tendo em mãos sua espada mágica Grito da Lua, ela enfrenta ameaças humanas e sobrenaturais. Esta é a primeira aventura de uma série que pretende ser, ao mesmo tempo, uma homenagem e uma crítica ao subgênero, inspirada em mestras e mestres como Robert E. Howard, Tanith Lee, Michael Moorcock, Charles R. Saunders e C.L. Moore.

Leiam o início do conto: 

Podia ser a fome. O frio. Os primeiros raios de sol. A chuva. A vontade de urinar. Geralmente, uma perturbação dessas isolada, ou uma combinação de duas, três ou todas juntas. Mas também podia ser uma perturbação mais ameaçadora, fatal. Uma sorrateira cobra-colar, que se aproximaria enquanto estivesse deitada a céu aberto, e se envolveria em seu pescoço, tão ágil quanto o saque de uma espada, para sufocá-la com a pressão do corpo delgado e as escamas abertas, pontudas, venenosas. Ou um bando de hienas-amarelas, que aguardariam com paciência até que pegasse no mais profundo dos sonos, então avançariam, entre as muitas pedras que cobriam a planície de Jara, para atacar, despedaçá-la e devorar sua carne.

Porém, havia uma perturbação ainda mais fatal. De outra natureza, ao mesmo tempo, tão próxima e tão distante de Quenai.

Nessa hora, Grito da Lua não poderia ajudar, além de oferecer a lâmina eternamente afiada. Quenai teria de sobreviver sozinha.

Ela ouviu algo. Abriu os olhos. Sentia fome, um pouco de sede. Ao ar livre, nunca dormia completamente saciada, satisfeita. O vazio no estômago não permitia que adormecesse de verdade, que sonhasse. O descanso era uma imitação de sono. Precisava estar pronta para qualquer ameaça.

Ficou alerta, mas não se mexeu. Continuou deitada de lado, sobre a manta espessa de algodão, coberta por sua pele de cabra. A manhã ainda estava fria e cinzenta.

Apertou os dentes e os lábios grossos. Começar o dia dessa maneira, agitado, a deixava possessa.

Ao redor, a vegetação era baixa, misturando tons verdes, amarelos e marrons, com poucas árvores finas. O que tornava aquele lugar único eram as formações de pedras escuras de vários tamanhos, espalhadas em todo o campo aberto. Pareciam jarros enormes. Diziam as lendas que, milênios antes, o extinto povo jara dominava aquelas terras. E que as formações de pedra eram crematórios, onde os mortos se tornavam pó, em rituais fúnebres em louvor ao deus Cra, o Lanceiro da Morte.

Quenai podia ver com nitidez, na altura do chão, mas ainda assim sua visão estava limitada. No início da noite anterior, ela sabia que tinha de parar a viagem. Aliás, viagem que nem devia ter começado. Já era tarde quando partira. Onde estava com a cabeça para se meter numa situação de perigo tão evitável? A falta de dinheiro era a resposta óbvia. Contudo, a melancolia que a dominou, em seus últimos dias numa cidade grande, com certeza, tinha contribuído para afetar-lhe o raciocínio. Não era nada inteligente ficar vagando por aquela planície, à noite. Então ela procurou um local estratégico para descansar sua espada, comer um pouco e dormir. Queria se proteger das ameaças potenciais. Tinha de fazer escolhas. Preferiu repousar num trecho onde os jarros estavam mais distantes uns dos outros. Isso evitaria uma aproximação surpresa de hienas-amarelas. Num trecho onde os jarros estivessem mais próximos, Quenai melhor camuflada aos olhos de viajantes, as feras de pelos longos e eriçados nas costas podiam, pelo alto das pedras, cair sobre seu corpo. Em campo aberto, era mais fácil percebê-las. Para afugentá-las, usaria um apito de madeira com partes móveis. A peça gerava sons desagradáveis para vários tipos de animais e imitações do urro de predadores. Caso as feras insistissem em cercá-la, ela faria fogo e um círculo de chamas à sua volta. E em último caso, o enfretamento. Mas, nas poucas vezes que estivera ali, à noite, o apito bastou. Contra o avanço de cobras-colar, contava apenas com a agilidade de sua adaga. Em relação à gente, a coisa era mais imprevisível.

Com os ouvidos atentos e o nariz apurado, Quenai percebeu uma inquietação no ar e nenhum fedor. Entre grilos-de-veludo próximos e corvos-azuis ao longe, não havia a presença de cavalos nem de cães ou lobos de caça. Isso foi bem fácil de deduzir. Mais difícil foi estabelecer a posição de quem a espreitava.

Não era um estranho solitário. Havia mais alguém. Quantos seriam ao todo, três, quatro desgraçados?

Por que não lançaram uma flecha, uma machadinha ou uma adaga, perfurando a pele de cabra, atingindo-lhe a perna ou o torso? Estariam apenas esperando a reação dela? Ou não teriam tais armas, guardando as espadas para o ataque a curta distância? Ou queriam preservá-la para o estupro, a servidão, para ser vendida como escrava nas cidades da Costa de Marfus? Ou eram apenas burros, incompetentes, covardes?

Essa incerteza deixava Quenai inquieta. Mas ela não podia se mexer. Ainda não.

Estava pronta para a luta. Completamente vestida, botas calçadas. O cinturão com bolsos firme. A adaga de lâmina curva dentro da bainha de couro liso, à disposição, no quadril direito. E Grito da Lua estava bem à sua frente, deitada com ela, guardada em sua bainha de couro trabalhado.

O silêncio da espada era a certeza de que se tratava de uma ameaça humana. Se a ameaça fosse além de sua compreensão, mística de alguma forma, Grito da Lua se manifestaria.

Agora Quenai contava apenas com suas habilidades de combate. Mas fazia quase duas semanas que não lutava com ninguém. Nem mesmo para treinamento. O serviço de escolta da filha de um comerciante da cidade de Carná, uma noiva prometida a outro comerciante da cidade vizinha de Arbaque, não fora exigente. E o bom pagamento a deixou um tanto mole, com muita comida para estufar a barriga, muitas horas de sono numa cama aconchegante de estalagem, e sexo com um ou outro habitante daquela região do Império de Boro ou algum forasteiro, que aceitaram seus convites para beber; e ela sempre tomando uma dose de poção seca para não engravidar. Quando o dinheiro acabou, quando o ânimo acabou, achou melhor voltar para a estrada.

Não tinha nenhuma esperança de que aqueles à sua espera não passassem de viajantes perdidos, desorientados, talvez feridos ou bêbados. Gente assim não costumava se aproximar, na surdina, de estranhos dormindo ao ar livre. Iriam para o lado oposto, para longe, ou gritariam por ajuda. Ao contrário de bandidos, arruaceiros, soldados, guerreiros e mercenários, laia pior do que qualquer bando de hienas-amarelas estudando sua presa.

“Ei, você! Não temos o dia todo!”, disse uma voz de mulher, em bor, a língua comum.

NOVELETA “RAÇAS”: LEIAM UM TRECHO

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Inspirada em autores como Philip K. Dick, Isaac Asimov e John Scalzi, a noveleta Raças, integrante da antologia Estranha Bahia, mistura ficção científica e trama policial. Numa Salvador do futuro, humanos convivem abertamente com uma raça alienígena. Um policial humano, que faz bicos como investigador particular, é contratado para descobrir quem matou um criminoso alien. Diferenças culturais, preconceito, corrupção. Ninguém é inocente, até que se prove o contrário. Leiam um trecho:

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Início da gravação 8-B, 23 de outubro de 20… 01:19 AM

Fiquei de me encontrar com Lupo na Avenida Sete, na Praça da Piedade. Era um dia quente dos infernos, doutora. Eu rezava pro infeliz não se atrasar demais. Eu corria contra o relógio.

Gosto de ser pontual em meus compromissos. O pessoal do DP diz que essa é mais uma das minhas esquisitices. Falam coisas sobre mim, na minha cara. Mas as ofensas de verdade só pelas minhas costas. Fico sabendo de algo, mais cedo ou mais tarde. Carlão é o único que fala o que realmente pensa, olhando no meu olho. Ele me odeia. Qualquer dia desses, ele pode armar uma pro meu lado. Talvez até armar uma treta fortíssima e me dar um tiro na nuca… Que porra fiz ao cara? Não faço ideia, sério…

Bateu a sede.

Fui até um carrinho de água de coco, perto do gradil que cerca a praça.

“O que vai ser, chefe?”, disse o vendedor. Um sujeito franzino com uma expressão esperta, mas cauteloso.

“Um copinho bem gelado.”

Ele tinha sacado que eu era polícia?

Eu não usava óculos escuros. Vestia uma camisa de flanela folgada e calça jeans. Minha arma estava escondida na cintura.

Não costumo passar pela região a pé.

O vendedor me entregou um copo plástico gelado.

Uma garota de traços orientais, talvez coreana, talvez chinesa, passou por mim, me encarou. Parecia uma bonequinha de marmanjo. Daquelas, doutora, que os caras pagam não sei quantas prestações para adquirir as esposas mais obedientes e taradas do mercado.

Seus olhos eram púrpuros.

Ela não usava lentes de contato… Ou seria mais um daqueles idiotas que imitam os eladianos, usando lentes púrpuras?

Eu ainda não tinha bebido uma gota da minha água de coco.

Virei o copo de vez.

Amassei o copo e o joguei no cesto de lixo acoplado no carrinho.

Uma senhora se aproximou.

“Eu quero uma garrafinha.”

O vendedor a atendeu.

Tirei meu smarty do bolso da calça. Conferi as horas pela segunda vez desde que tinha chegado.

Lupo estava atrasado nove minutos.

Eu me sentia um alvo fácil. De pé, em silêncio, apenas observando. Enquanto a maioria das pessoas se movimentava pra lá e pra cá, na lerdeza ou às pressas. Até quem estava parado fazia algo útil, como vender suas mercadorias ou jogar conversa fora.

Chequei minhas mensagens. Nenhuma era de Lupo. Aquele filho da puta. Desculpe, doutora… Ele sabia que estava me devendo. Ele não era maluco de furar comigo.

O vendedor atendeu um casal de estudantes.

Reparei que o garoto e a garota usavam aqueles aparelhos em forma de pulseira, em que a tela é projetada no braço da pessoa, um holograma. Sumaya, minha filha, já quis me dar um desses. Eu disse não, obrigado. Seria pedir demais da minha rabugice.

Então meu smarty vibrou.

Era uma mensagem de Lupo: taxi corolla vidro preto.

Coloquei o smarty de volta no bolso, saquei minha carteira e paguei o vendedor.

“Fique com o troco”, eu disse, meio apressado.

“Valeu, chefe.”

O vendedor não pareceu surpreso com meu gesto.

Se ele soubesse que eu era polícia, não esperaria pagamento nenhum. A água de coco seria uma cortesia forçada.

Fui pra ponta do passeio. Tentei avistar o tal táxi.

Foi naquele ponto da praça que combinamos de nos encontrar.

O trânsito estava pesado, lento, mas não a ponto de travar tudo.

Era por volta das dez da manhã.

Passei a mão na testa pra limpar o suor em excesso.

Estava atento à movimentação dos carros. Então percebi quando um Corolla, todo laranja, com listras laterais em vermelho e azul, saiu da faixa do meio, ágio, indo pra faixa da direita. Acompanhou o fluxo mais livre, parou, seguiu devagar, depois acelerou o que pôde, ganhando terreno em segundos. Até parar quase ao meu lado, só um pouco mais na frente.

Os vidros eram completamente escuros, inclusive o para-brisa.

Dei alguns passos pra ficar lado a lado com o táxi.

A calçada tinha um passeio alto.

Não dava pra ver ninguém dentro do táxi.

Senti um friozinho na barriga. Paranoia de policial.

O vidro do carona desceu. Não reconheci o homem que apareceu na janela. Mas, no momento seguinte, fiquei mais tranquilo ao perceber que Lupo estava ao volante.

Ele também me encarou, avançando a cabeça, fazendo um esforço pra ser visto por mim.

“Entra aí, doido”, ele disse, em sua voz gasta de fumante.

Desci na pista e abri a porta traseira. Entrei no táxi.

Senti o friozinho do ar-condicionado.

E a pressão da minha arma nas costas contra o banco.

O rádio estava sintonizado numa emissora qualquer, o locutor falando sobre as notícias do dia.

“Não vai estourar comigo, vai?”, Lupo disse, olhando pra mim pelo retrovisor interno. Depois olhou pro seu retrovisor, aguardando uma brecha no trânsito pra ir embora.

“Relaxe, cara. Você tá me fazendo um favor, não tá?”

Nossos olhares se encontraram no retrovisor interno. Parecia que tudo estava resolvido entre a gente.

“Esse aqui é meu irmão”, Lupo disse, checando mais uma vez o trânsito pelo seu retrovisor.

O tal irmão virou a cabeça.

“E aí?”, ele disse.

“Tudo certo”, respondi.

Lupo arrancou com o táxi.

“Detetive, você sabe que seu smarty foi provisoriamente desativado.”

O tom de Lupo era de pura ironia.

Paguei a ironia com um sorriso de canto de boca.

Era o lance da possibilidade de rastreamento, doutora.

Sim, eu sabia que o táxi tinha algum dispositivo que bloqueava o sinal de qualquer smarty. Na verdade, de qualquer aparelho invasor. Mesmo desligado, meu smarty não podia ser rastreado.

Provavelmente, o rádio funcionando era a chave do mistério.

Mexi o corpo, fui sentar bem no meio do banco. Assim eu teria uma melhor visão dos meus companheiros de viagem.

“Depois dessa, você vai ficar um bom tempo sem me pedir um favor, detetive.”

Lupo tentava dar atenção ao trânsito e, pelo retrovisor interno, a mim.

“Fique tranquilo. Sei muito bem qual é o preço do meu favor.”

“Cara, isso envolve os transparentes, os turistas, vocês da cana. É muita coisa numa confusão só.”

Lupo conseguiu espaço pra entrar na faixa da esquerda.

O barulho e a luminosidade da rua praticamente ficaram do lado de fora. Estávamos quase em outro mundo. Uma bolha de conforto e segurança.

O táxi era o escritório de Lupo. Na verdade, ele tem dois ou três carros adaptados como aquele. Que eu saiba. Um bem diferente do outro.

“Eu quero ouvir a história. Só isso.”

O irmão de Lupo se mexeu no assento. Senti que estava nervoso.

Ele era mais jovem. Não tinha a mesma fisionomia de Lupo. Provavelmente eram meios-irmãos. Filhos de algum bicho solto no mundo.

Três caras negros dentro de um carro. Motivo suficiente para qualquer blitz da PM mandar encostar. Mesmo sendo um táxi.

Só não era pior do que três eladianos dentro de um carro.

Lupo parou na entrada de uma ruela. Esperou alguns pedestres passarem. Então se enfiou naquele lugar estreito, meio em declive. Fomos dar na Avenida Carlos Gomes.

Na minha opinião, doutora, o Centro de Salvador é um museu bizarro a céu aberto. Mistura de decadência com uma modernidade de plástico, de péssimo gosto.

Avançamos na avenida sem qualquer problema. Naquele instante, naquela faixa, o trânsito estava livre. Até nos misturarmos ao resto dos carros, ônibus e motos que vinham na retaguarda.

“O que vocês têm pra mim?”

O irmão de Lupo olhou pra ele. Lupo fingia só estar interessado no trânsito.

“Conta”, Lupo soltou, finalmente.

O irmão pigarreou.

Enquanto contava a história, ora ele se virava pra trás, na minha direção, ora voltava pra encarar o para-brisa escuro.

A programação do rádio, um misto de músicas, notícias e propagandas, não aborrecia, não atrapalhava.

“Cara, isso eu ouvi de um cliente meu, ontem. Ele mora num condomínio de mansões no Caminho das Árvores.”

“Qual o nome do seu cliente?”

“Pra que dizer o nome do cara? Você vai mexer com ele?”

O irmão me encarou com uma expressão de poucos amigos.

“Deixa pra lá.”

“Como eu tava dizendo… esse meu cliente viu uma movimentação estranha no condomínio, durante a madrugada da segunda-feira. Por coincidência, ele não tava chapado naquela noite. Tava bêbado, mas deu pra ver o que acontecia do lado de fora. Parece que mais ninguém notou o que tava rolando.”

“Ou alguém mais também viu e não quer abrir a boca.”

“Não interessa. Você quer ouvir a história, certo?”

O irmão me encarou.

“Prossiga.”

Fechei a cara. Aquela figura começava a me irritar, doutora.

A expressão de Lupo estava tensa. Ele tentava, ao mesmo tempo, ser um ouvinte e um motorista atento.

Ele entrou no Largo dos Aflitos. Iríamos pra Cidade Baixa, pensei na hora. Eu queria saber que zorra íamos fazer por lá. Mas deixei o assunto quieto.

“Meu cliente tava com uma prima. Ele é engenheiro. Na hora, ele não tava chapado. Senão não dava pra comer a menina direito.”

“Não enrola.”

Lupo encarou o irmão, esquecendo por dois segundos a ladeira íngreme que descíamos.

Também por dois segundos fiquei apreensivo, com medo de acontecer um acidente.

Os dois idiotas travaram uma rápida batalha de nervos, um encarando o outro.

“Tá bom”, disse o irmão, aborrecido.

Lupo voltou a prestar atenção à ladeira.

O irmão continuou:

“Teve uma hora que meu cliente foi até a parede envidraça da sala da mansão, que fica no primeiro andar. A parede dá pra rua de acesso do condomínio. As cortinas tavam abertas, mas a casa tava às escuras. Ele tava bêbado, pensando não sei o que da vida, talvez como ele era um merda, privilegiado, mas um merda, quando ouviu um som medonho e agudo… ele me disse exatamente isso: medonho e agudo… Algo que ele nunca tinha ouvido antes…”

Lupo alcançou a Avenida Contorno. Mesmo interessado na história, eu tive que virar a cabeça e dar uma checada no mar brilhando lá embaixo, a perder de vista. Nunca me canso de apreciar aquele marzão.

“Ele não soube sacar de onde exatamente tinha surgido o grito. Olhou pra um lado e pro outro pela vizinhança, mas nada. A rua de acesso do condomínio tava deserta. Apenas três ou quatro casas tavam com as luzes acesas, mas não dava pra ver ninguém. Nenhuma casa ali tem muro na frente…

“Ele poderia ter voltado correndo pro quarto pra junto da prima, mas a curiosidade foi mais forte. Quase acendeu um cigarro, mas acabou se tocando que seria puro vacilo. Ele não tinha muita noção do tempo, afinal tava bêbado. Ele não sabia direito quanto tempo levou até perceber uma movimentação três casas à sua esquerda, do outro lado da rua…

“A casa tinha um largo portão na garagem. O portão se levantou. Lá dentro, uma Mercedes com os vidros completamente escuros deu a partida, acendeu os faróis e saiu, meio às pressas… Não deu pra ver quem era o motorista, ou se tinha mais alguém junto… Ele percebeu que as luzes da casa continuaram acesas. Achou até que viu uma movimentação lá dentro… Ele esperou, esperou, esperou pra ver se acontecia mais alguma coisa… Aí meu cliente perdeu o interesse e voltou pro quarto pra continuar bebendo e trepar…”

“Esse seu cliente viu a Mercedes de novo?”, perguntei.

“Não, nunca mais.”

“Placa do carro?”

“Tá viajando, cara.”

“Mas seu cliente sabe quem é o dono da casa.”

O irmão deu um sorrisinho.

“Um tal de Bruno Villa Corrêa, um advogado.”