AS 6 MELHORES HQS QUE LI EM 2016

6)Black Panther –A Nation Under Our Feet vol.1, de Ta-Nehisi Coates, Brian Stelfreeze e Laura Martin, 144 págs., Marvel.

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Não é a primeira vez que a Marvel convida um outsider para assumir um título. Ta-Nehisi Coates é um dos mais aclamados jornalistas americanos, principalmente, por suas reflexões sobre a condição do negro nos EUA. A ideia de ele escrever a nova fase da revista do Pantera Negra é muito interessante e oportuna. E o que Coates propõe é algo bastante ambicioso. Ele questiona a própria razão de ser de T´Challa/Pantera Negra como rei e protetor de Wakanda. Coates coloca o povo em primeiro plano, com seus medos e expectativas, questionando por que devem se submeter a uma monarquia. Este primeiro volume é o prenúncio de uma guerra civil? Coates é um jornalista, não é um ficcionista. Isso fica evidente na maneira como ele conduz a trama. Mais por diálogos do que pela ação. Muitas vezes, as falas têm um tom shakespeariano, épico. Visualmente, tudo é muito lindo e vibrante. As ilustrações de Brian Stelfreeze com as cores de Laura Martin criam uma atmosfera única, numa mistura de tradição com alta tecnologia, que o leitor só vai encontrar em Wakanda. Estou muito curioso para acompanhar a evolução do Pantera Negra como herói e de Coates como roteirista.

5) Blame! vol.1, Tsutomi Nihei, 248 págs., JBC.

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Primeira obra de destaque de Nihei, Blame! foi lançado no Japão há quase vinte anos. O próprio autor considera embaraçoso um trabalho de sua juventude ser publicado agora no Brasil. Mas ele não tem nada do que se envergonhar. Blame! é um mangá de visual impactante e ideias robustas. Inspira-se no cyberpunk para criar uma estética, ao mesmo tempo, fascinante e bizarra. Os personagens falam o mínimo. Humanos, ciborgues, seres geneticamente modificados. Há uma disputa de todos contra todos num lugar inteiramente de metal, com muitos andares, túneis e salas, uma estrutura que parece infinita. Nihei usa sua formação como arquiteto para deslumbrar o leitor com cenários incrivelmente detalhados. Para completar, a trama nos prende por seus mistérios e sua crueldade. Neste mundo, o sentido da vida é algo que precisa ser reconquistado.

4)Batman – A Corte das Corujas vol.1, de Scott Snyder, Greg Capullo e Jonathan Glapion, 176 págs., Panini.

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Scott Snyder é um dos melhores roteiristas de quadrinhos da última década. Em A Corte das Corujas, ele revigora o universo de Batman, criando uma das melhores fases do protetor mais obcecado de Gotham. São roteiros mais adultos e cheios de pesquisa, dando um peso e uma verossimilhança que tornam o drama e a ação mais intensos. A composição das páginas, as soluções visuais, são muito bonitas, de grande impacto, chegando ao visceral. Trabalho magnífico do ilustrador Greg Capullo e do colorista Jonathan Glapion. Batman enfrenta adversários à altura, que testam sua sanidade e seu corpo ao extremo e o fazem questionar suas convicções.

3) Pílulas Azuis, de Frederik Peeters, 208 págs., Nemo.

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HQ autobiográfica em que o autor conta a história de sua relação com a esposa e o enteado soropositivos. O grande mérito aqui é desmistificar a AIDS, humanizando as pessoas atingidas pela doença. Vamos saber como a paranoia social e o preconceito podem ser quebrados com a informação sobre maneiras de contágio, tratamento e a saúde dos soropositivos. No geral, o tom da HQ é leve, o relato de um cotidiano quase normal, mas há os momentos de angústia, dúvida, tristeza e desespero. Outra característica importante é a autocrítica. A HQ usa a metalinguagem. Uma obra consciente de que é uma obra. O autor fala sobre o dilema de expor ou não sua vida, as pessoas que ama. Mas, por outro lado, a HQ não poderia ajudar muita gente a entender melhor a AIDS, a não surtarem no convívio com soropositivos, a dar aos próprios soropositivos uma oportunidade de dizer que são pessoas iguais às outras, que também querem tocar a vida?, pensa o autor. O traço cru das ilustrações, em preto e branco, funciona muito bem ao mostrar, com franqueza, o cotidiano diferente de uma família comum.

2)Nimona, de Noelle Stevenson, 272 págs., Intrínseca.

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Todo mundo devia ler Ninoma. As meninas para se inspirarem numa figura feminina que não aceita classificações de nenhuma forma. Os meninos para admirarem uma garota fora dos padrões que vai fazê-los repensar muita coisa sobre o universo das mulheres. Esta é uma graphic novel que não se leva a sério, na superfície, mas que possui um subtexto muito consciente e rico, sem pesar a mão. A mistura inusitada de fantasia medieval e ficção científica resulta numa paródia com cara de desenho animado, tipo Hora de Aventura. A ilustradora e roteirista Noelle Stevenson tem um timing de comédia afiado. Há muito nonsense tanto nos diálogos quanto nas tiradas visuais. O que começa como algo divertidíssimo vai ficando cada vez mais sombrio. É uma transição que funciona. É isso que faz toda a diferença, tornando Ninoma uma obra relevante. Diverte, emociona e faz pensar.

1)Tungstênio, de Marcello Quintanilha, 184 págs., Veneta.

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Esta graphic novel foi lançada em 2014, mas só este ano tive conhecimento dela pela notícia da premiação em Angoulême, o mais importante festival de quadrinhos da Europa. Aproveitei uma promoção na internet e comprei. Senhoras e senhores, que HQ sensacional! O roteiro complexo, mas de uma clareza impressionante, amplia a força do traço realista. Marcello Quintanilha conseguiu transformar histórias do cotidiano numa trama cheia de suspense e significados. Outro destaque é como o autor carioca soube captar tão bem a fala e o comportamento da gente de Salvador. Como soteropolitano, nascido e criado na cidade, posso dizer que ele fez direitinho o dever de casa. Monte Serrat, um dos lugares mais icônicos da capital baiana, torna-se palco central de um drama de tirar o fôlego, que começa com um fato corriqueiro e, aos poucos, vai se complicando. É um retrato além do noticiário, além do senso comum, de gente negra, suburbana, que tem de se virar, com suas angústias e frustrações. O olhar de Quintanilha não é clínico. Ele procura dar voz aos personagens, para que o leitor acompanhe os acontecimentos pelo ponto de vista deles. Depois de ler Tungstênio, dá vontade de procurar tudo o que esse cara já publicou.

OS 6 MELHORES FILMES QUE VI EM 2016

Este ano vi filmes muito bons, no cinema, na TV a cabo e na Netflix. Darei destaque apenas aos que assisti na telona. Inclusive às ciladas. A maior delas foi Batman vs Superman. Eu já estava desanimado pelo filme ser obra de Zack Snyder. Mesmo assim, eu tinha que ver a coisa com meus próprios olhos. Ao sair do cinema, tive vontade de arrancá-los. Outra grande decepção foi Star Trek – Sem Fronteiras, uma trama frouxa com os personagens tão subaproveitados. Outro exercício de masoquismo foi ver Esquadrão Suicida, aquela colagem de cenas sem sentido, sem graça. Pra fechar a sessão de tortura, o quadradão e racista A Lenda de Tarzan. Para compensar, teve o sempre acima da média Tarantino com Os Oito Odiados. Capitão América: Guerra Civil, num pegada deliciosa de saga de quadrinhos. O divertido e maduro Zootopia. E o sombrio e deslumbrante Rogue One. Os seis filmes escolhidos como os melhores do ano são aqueles que me causaram aquela sensação de arrebatamento, que não saíram da minha cabeça por dias ou semanas por sua excelência técnica e abordagem fora dos padrões.

6)Deadpool

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Como a adaptação de um personagem de quadrinhos pouco conhecido, com um orçamento muito abaixo das grandes produções, tornou-se sucesso de crítica, de público e de bilheteria? A resposta não é tão simples, mas pode ser resumida: liberdade de criação. Os realizadores de Deadpool foram inteligentes em criar uma comédia de ação muito bem azeitada. Ryan Reynolds tem aqui a interpretação de sua vida. Um ator que muitos consideram insuportável, mas que arrasa como Wade Wilson/Deadpool. Totalmente despido de ego. Afinal, ele se matou dentro e fora da tela para que esse projeto vingasse. Era praticamente sua última chance como astro de cinema. O diretor estreante em longas Tim Miller mostra muita segurança. Ele entrega um filme com timing de comédia e de ação impressionantes. A montagem tanto acompanha a agilidade dos diálogos quanto a destreza e força das lutas, em coreografias excitantes e claras. O orçamento menor fica evidente em alguns momentos, principalmente, nos efeitos especiais. Não existe nada malfeito, e sim com menos textura. Mas o espectador não está nem aí. A atmosfera do filme é tão legal que certos aspectos mais toscos combinam bastante com toda a zoeira. Agora os verdadeiros heróis de Deadpool, como a hilária sequência de abertura ressalta, são os roteiristas Rhett Reese e Paul Wernick. Sem esse roteiro, Deadpool seria uma boa comédia de ação apenas. O roteiro tem diálogos afiadíssimos e escrachados  em suas autoreferências e metalinguagem, recursos derivados do personagem nas HQs. Outro ponto inteligente é a estrutura, usando de forma dinâmica os flashbacks. A trama é convencional. Herói ou anti-herói quer se vingar de bandido. O grande barato está na maneira como isso é feito. Deadpool mostra o ridículo do universo dos super-heróis, mas também reconhece que sem eles o mundo seria mais chato.

5)A Chegada

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O diretor canadense Denis Villeneuve é um nome ascendente em Hollywood. Conhecido pela extrema segurança ao filmar, pela beleza de suas produções e por provocar o espectador com questionamentos morais. Alguns o chamam de brilhante, um novo mestre do cinema. Outros de farsa, com domínio técnico demais e ideias de menos. Em A Chegada, ele provoca o espectador a repensar conceitos como vida, morte, escolha e destino. É um filme otimista. Emocionante, sem ser piegas. Eu já tinha lido a novela Story of your life, de Ted Chiang, na qual A Chegada se baseou (recentemente a editora Intrínseca publicou uma coletânea do autor). A grande revelação do filme não foi nenhuma surpresa para mim. Minha curiosidade estava em saber como fariam a adaptação da história de Chiang, por causa de sua estrutura peculiar. E também como tratariam as ideias e discussões científicas. Posso dizer que A Chegada é uma bela adaptação, fiel na medida do possível. E mesmo quem já leu a novela vai se surpreender com algumas novidades. A Chegada é bem-sucedido em traduzir, num fenomenal trabalho de montagem, a estrutura menos convencional de Story of your life. A única atuação que realmente se destaca é a de Amy Adams. Ela domina o filme. É um papel exigente, sutil, cheio de nuances e variações emocionais. Não há gritaria nem caras e bocas. Ela foi mais do que convincente. Alguns podem dizer que o filme é pretensioso. Muita pompa para ideias que não se sustentam. Discordo. A Chegada é um entretenimento visualmente arrojado com substância. Estimula o debate de temas relevantes com honestidade. Já entrou para a lista dos melhores filmes de FC de todos os tempos.

4) Creed

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O filme sabe dosar bem momentos de drama, sem apelar para a pieguice, e momentos de ação, cheios de energia. O diretor Ryan Coogler mostra muita habilidade em criar uma atmosfera que te deixa ligado na tela o tempo todo, usando fotografia, montagem, efeitos sonoros e música, numa pegada bem contemporânea. Mas não é videoclipe. A direção das lutas coloca o espectador quase em primeira pessoa, em planos-sequência muito bem coreografados, que não parecem encenados. O filme a todo instante faz referência à franquia Rocky. Mas os elementos do passado são integrados à trama de uma maneira bem orgânica. Além de um empolgante filme de boxe, Creed é um tocante drama familiar, que também não deixa de ser divertido. O trio principal está muito bem (Stallone, Michael B. Jordan e Tessa Thompson). B. Jordan tem muita presença física, carisma e um arco complexo. Tessa Thompson interpreta uma personagem cheia de atitude. E não vejo Stallone tão bem há muitos anos. Ele está atuando mesmo, e não fazendo pose de astro de Hollywood. Esse é um Rocky frágil, doce, mas cheio de experiência sobre boxe, sobre a vida. Gonna fly now, o  tema clássico de Rocky, toca apenas uma vez durante o filme. E é de arrepiar.

3) Boi Neon

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O diretor pernambucano Gabriel Mascaro reinventou o imaginário do Nordeste ao mostrar a realidade contemporânea da região, onde progresso, miséria, tradição e cultura pop andam lado a lado. Na superfície, acompanhamos o cotidiano das vaquejadas, onde a virilidade de homens e animais é tão presente. Mas o interesse aqui é mostrar outro olhar sobre esse universo, considerado brutal por muitos. O filme não tem propriamente uma trama. É um estudo de personagens. E eles são tão ricos, tão bem representados, que nos ganham a cada cena. A entrega do elenco é total, dos atores profissionais e dos não-atores. Vemos um questionamento constante de papéis e de dinâmicas sociais, do que é ser masculino e feminino. Iremar, um vaqueiro, almeja ser estilista de moda. Enquanto Galega dirige um caminhão e cria a filha sozinha. Mas há muito mais. Cada personagem tem seu encanto e sua subversão. A transição entre comédia e drama não é forçada. Os diálogos divertidos, tensos, ou delicados nunca tiram o espectador desse mundo. A montagem é paciente, mas vigorosa, com o uso frequente de longas tomadas. A direção de arte é enganosamente simples, recriando o ambiente rural, em locações reais. A fotografia estiliza o sertão sem parecer artificial, falso, com planos abertos durante o dia e o uso de cores fortes à noite. A trilha sonora, com sucessos nacionais, canções estrangeiras e música original, amplia o impacto das imagens. Boi Neon fala sobre sonhos, mas nunca de maneira romântica.

2)A Bruxa

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Filmes de terror marcantes não são aqueles que dão os maiores sustos, mas os que mexem com nossos mais profundos medos. Em A Bruxa, vemos o que acontece quando a sociedade patriarcal não funciona como o esperado. Numa produção de baixo orçamento, mas visualmente sofisticada, o diretor e roteirista estreante Robert Eggers perturba o espectador com um olhar perspicaz, analisando como o fracasso e a frustração podem colocar em teste até as certezas mais inabaláveis. O filme faz um embate constate entre norma, caos, sanidade e delírio. E isso afeta nossa própria percepção do que estamos vendo. As imagens sobrenaturais são reais, ou são projeções dos personagens, uma forma do diretor tornar mais evidentes os medos de cada um deles? A produção cria uma cenário verossímil e claustrofóbico. Acreditamos nas dúvidas dos personagens porque as atuações são incríveis, principalmente, dos quatro filhos. Até os animais estão maravilhosos! Tem um coelho que é muito assustador. Alguns podem considerar o filme lento e chato. Mas, na verdade, ele tem paciência em construir uma atmosfera de paranoia ao extremo. Já disseram que A Bruxa é uma anti-fábula, que o intuito do filme não é pregar uma moral, mas subvertê-la.

1)Elle

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Este filme francês é o melhor da carreira de Paul Verhoeven, superando até mesmo Robocop, uma violenta sátira ao american way of life e ao capitalismo, mas com um final conservador. Em Elle, Verhoeven está livre para desafiar o espectador até o último segundo. E assim como George Miller, diretor de Mad Max – Estrada da Fúria, o cineasta holandês prova que, aos 78 anos, está em evolução como artista.

Originalmente, Elle era para ser produzido nos EUA e protagonizado por uma estrela de Hollywood. Mas nenhum estúdio e nenhuma atriz se interessaram pelo projeto, considerado polêmico demais. Verhoeven ganhou fama de provocador com filmes, muitas vezes, classificados como apelativos. Mas, em Elle, a provocação é mais complexa. Aqui a rejeição pelo projeto tem mais a ver com o incômodo das verdades expostas, a profunda análise da condição humana.

Verhoeven levou o projeto para a França, terra do autor do romance que deu origem ao filme. O roteiro do americano David Birke foi vertido para o francês. E o cineasta holandês encontrou em Isabelle Huppert sua protagonista perfeita. Huppert é a força motriz dessa mistura de thriller, sátira social e drama familiar. Michèle Leblanc é uma mulher de 50 anos, empresária de sucesso, cercada por homens que questionam sua posição de poder, mãe, avó e alguém que não tem pudores em satisfazer sua libido. O personagem de Huppert é pragmática, irônica, decidida e imperfeita. Além disso, possui um passado sombrio. O interessante é que Verhoeven, em nenhum momento, pretende julgar Michèle. Ela é um mecanismo do diretor para abalar nossas certezas.

A segurança da direção é absurda. Verhoeven varia entre o intenso e o discreto com muita habilidade. A mise-en-scène cria uma atmosfera hitchcockiana, levando para outro nível o que já tinha sido feito em filmes como Instinto Selvagem e O Homem das Sombras. Elle é muito francês em seu conteúdo, mas com formato de suspense americano, na verdade, uma subversão do gênero. Amado ou odiado, considerado feminista ou misógino, Elle é um deleite visual e um veículo de discussão poderoso.

OS 6 MELHORES LIVROS QUE LI EM 2016

6) Série The Elephant and Macaw Banner, de Christopher Kastensmidt, 287 págs., independente.

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O mundo da série The Elephant and Macaw Banner (A Bandeira do Elefante e da Arara), criado pelo americano Christopher Kastensmidt, radicado em Porto Alegre, é um Brasil fantástico do século XVI, onde as lendas e mitologias formadoras do país ganham vida. Saci Pererê, Boitatá, Curumim, Iara, Labatut, Capelobo e outros. Até agora foram publicadas sete aventuras da dupla Gerard van Oost e Oludara. O primeiro um holandês que veio ao Brasil em busca de fortuna. O segundo um africano do Ketu (atual Benin), trazido à força como escravo. Ambos selam um pacto de amizade que é o fio condutor da série. É uma amizade improvável, mesmo numa versão fantástica de nossa História. O período colonial foi um dos mais brutais, com pouquíssimo espaço para sutilezas e compreensões de outras culturas. Mas, no Brasil criado por Kastensmidt, há gente de muito caráter, a começar pela dupla protagonista. Aqui a gentileza tem uma importância fundamental. É uma mentalidade contemporânea num cenário histórico. O autor mostra o esforço de suas pesquisas sobre as culturas e lugares do período com descrições ricas e dinâmicas, geralmente fugindo dos clichês, sem nunca atrapalhar o ritmo da narrativa e o desenrolar da trama. Uma das noveletas foi indicada ao prêmio Nebula. Este é um universo em expansão, com quadrinhos, jogo de RPG e, recentemente, foi publicada a versão em romance das aventuras de Gerard e Oludara em português pela Devir.

5) Ball Jointed Alice, de Priscilla Matsumoto, 212 págs., Draco

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Não é um livro para todos os estômagos ou cabecinhas. Acompanhamos aqui vários tipos de distúrbios mentais, de comportamento e familiar. Drogas, sexo e rock and roll, ou melhor dizendo, punk. Alguns podem classificar a história de emo, pelas atitudes sexuais, estados emocionais e referências à banda My Chemical Romance. Mas isso seria considerar apenas uma parte das influências da autora, que passam por Haruki Murakami e, claro, a Alice de Lewis Carroll. Realidade, sonho e pesadelo se misturam, deixando protagonista e leitor sem chão, desconfiando de tudo. Quem viu o anime Perfect Blue consegue ter uma boa ideia do que se trata. Dois nomes que não me saíram da cabeça enquanto eu avançava a leitura foram Philip K. Dick e Kafka. O pesadelo da paranoia. O maior mérito da autora foi saber dosar momentos de ação, o drama dos personagens sendo exposto, por meio de descrições e diálogos, e momentos de digressão, principalmente, de Frank, o narrador. Ela faz essa dobradinha com muita fluidez e uma poesia dura, de impacto. Além de lançar ideias sobre a vida e o mundo bem consistentes, iluminadas.

4) Binti, de Nnedi Okorafor, 96 págs., Tor

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Binti é uma garota muito curiosa, matemática brilhante e filha de um fabricante de astrolábios. Ela faz parte do povo Himba. Um povo que dá valor ao conhecimento, mas muito fechado em si, bastante apegado às tradições. Quando a jovem decide viajar para outro planeta, onde se encontra a universidade mais prestigiosa da galáxia, gera-se uma crise familiar. Na viagem, o contato com uma raça alienígena será revelador para Binti. A força da prosa da autora está em elaborar um texto simples, fluido, muito gostoso de ler, que levanta ideias pouco convencionais sobre os papéis da mulher, sede de conhecimento, poder do estado, tradição, modernidade e negritude. É uma história principalmente sobre a identidade que escolhemos para nós mesmos, a partir de nossa cultura e da relação com culturas diferentes. É um texto ora brutal, ora cheio de amor. Okorafor subverte as convenções da ficção científica para tornar o gênero mais vibrante. A novela ganhou os prêmios Nebula e Hugo deste ano.

3) Max Perkins – um Editor de Gênios, de A. Scott Berg, 544 págs., Intrínseca

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Perkins se tornou uma lenda no mundo editorial dos EUA no início do século 20. Ele mudou a literatura americana ao descobrir autores como F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway. Perkins respeitava os autores do passado, mas sua vontade era trabalhar com novas ideias, novas abordagens da vida americana. Mas ele teve que insistir muito na editora onde trabalhava, a tradicional Scribner, para publicar autores talentosos, mas erráticos. A biografia de A. Scott Berg foca nos três mais famosos e encrenqueiros: Fitzgerald, Hemingway e Thomas Wolfe. O caso mais interessante do livro é a relação entre Perkins e Wolfe. Serve principalmente para percebemos como opera um editor dedicado. Claro que o exemplo de Perkins é bastante particular, mas, de maneira geral, todos os mecanismos da função estão presentes. Chegando ao extremo com Wolfe, autor talentoso, indisciplinado e de temperamento difícil. Ele não ligava muito para a coesão de sua escrita. Terminava manuscritos de milhares de páginas e cabia a Perkins achar um livro ali dentro. O editor lia tudo minuciosamente, sugerindo mudança de ordem de capítulos, supressão de outros, desenvolvimento de personagens e cenas, e mais clareza em certas ideias. Mas Perkins sempre afirmava que qualquer livro era fruto do talento do autor, que a discrição do editor era a coisa mais importante do ofício. Ele chegou a dizer: “Gostaria de ser um anãozinho no ombro de um grande general, aconselhando-o sobre o que fazer e o que não fazer, sem que ninguém percebesse”. O livro foi originalmente publicado em 1978. Deve haver novos dados sobre Perkins por aí, mas a biografia não parece datada. Leitura obrigatória para quem deseja conhecer mais sobre um importante episódio da história do mercado editorial e da cultura americana.

2) A Desobediência Civil, de Henry David Thoreau, 150 págs., Companhia das Letras.

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Thoreau foi um dos pensadores mais fascinantes do século 19. Os EUA de sua época eram um país que utilizava o trabalho escravo e a conquista de territórios em nome do progresso. Thoreau era totalmente contra a escravidão e o pagamento de impostos para financiar um estado bélico que se apropriava de porções do México e massacrava povos indígenas. Para ele, a desobediência civil era legítima quando o governo não representasse mais as prioridades de uma sociedade justa. Como o próprio Throreau diz, um governo só é eficiente quando valoriza a vida. Portanto, é dever de cada um fazer algo concreto para tornar as autoridades cientes disso. Ou seja, não corroborar com as normas sociais que fortalecem o estado e rebaixam o ser humano. Quando uma lei é injusta ou imoral, ela deve ser desacatada. Esta edição da Companhia das Letras traz o famoso ensaio e outros textos de Throreau. Um autor de ideias poderosas e estilo sedutor. O livro está repleto de trechos que podem ser destacados, tornar-se máximas afiadas. A leitura não é completamente empolgante. Há passagens descritivas demais ou reflexões menos inspiradas. Porém grande parte do material é cheio de insights também sobre as prioridades na vida individual e em sociedade, as vantagens da solidão e de um cotidiano mais simples para descobrir a si mesmo e a valorização da natureza. Thoreau era um idealista com os pés no chão. Sabia como o mundo funcionava. E, por isso, queria transformá-lo. Em vida, o reconhecimento de sua obra foi restrito. Mas, no século 20, sua influência foi enorme na política, literatura e filosofia, na voz dos descontentes.

1)Kindred, de Octavia E. Butler, 264 págs., Beacon Press

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Acompanhamos a história de Dana, uma jovem escritora negra, na Los Angeles de 1976 (o romance foi publicado em 1979). Recém-casada, ao se mudar para a nova casa com o marido, Kevin, um escritor branco, inexplicavelmente, Dana é transportada no tempo e no espaço para a zona rural de Maryland, em 1815, antes da Guerra Civil Americana. A narração em primeira pessoa emula os relatos de ex-escravos que se tornaram marcantes na literatura americana pós-Abolição. O recurso da viagem no tempo permite um contraste poderoso. A voz de uma mulher negra contemporânea contando sua experiência como escrava. É um discurso articulado, cheio de insights sobre uma variedade de temas (racismo, poder, sexualidade, dominação, escolha…), sempre fazendo conexão com o que acontece com a mulher negra no passado e no presente. O texto é fluido, direto e imersivo. Butler soube muito bem equilibrar pesquisa e invenção. A voz de Dana nos passa toda a verossimilhança daqueles EUA do século 19, de como aquela sociedade funcionava, com seu cheiros, gostos e costumes. Principalmente, tomamos conhecimento da mentalidade de posse sobre a população negra. O elenco de personagens mostra pessoas negras e brancas de maneira complexa, no contexto brutal da escravidão. A relação entre mestres e escravos não é feita entre monstros e pessoas subservientes. E sim entre gente branca comum, que detém o poder sobre os corpos de suas propriedades, apoiada por toda uma sociedade escravocrata, e gente negra aviltada, que detém apenas o poder de cometer suicídio ou tentar uma difícil fuga para a liberdade. Este romance é um triunfo, tanto como peça de ficção quanto de reflexão. Butler flerta com a polêmica ao tratar da escravidão nos EUA de maneira complexa, sem ceder a maniqueísmos. Ganha a autora, por elaborar uma narrativa tão madura. Ganha o leitor, ao se deparar com um texto cheio de nuances e ideias desafiadoras.

AS 6 MELHORES SÉRIES QUE VI EM 2016

Já faz algum tempo que as séries de TV (e agora também dos serviços de streaming) superaram o cinema (principalmente, o americano) em termos de maturidade narrativa. Hoje em dia, não tenho mais saco nem tempo para assistir séries com temporadas longas, com vinte e tantos episódios; produto típico da TV aberta. Canais fechados geralmente produzem séries mais curtas, com tramas mais amarradas. Com o surgimento da Netflix e outros serviços semelhantes, o formato se transformou de vez, adequando-se mais à história que quer se contar e não o contrário.

6) Sherlock Holmes: A Noiva Abominável

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É uma delícia ver Cumberbatch e Freeman numa adaptação de época de Sherlock. O roteiro de Mark Gattis, que também interpreta Mycroft, conteve as pirotecnias narrativas de Steven Mofatt. A ciranda de reviravoltas está lá, porém é mais eficiente, orgânica e com propósito, sem deus ex machina. Há soluções para a trama bastante criativas, algumas realmente impressionantes. O clima de terror funciona. Outro elemento intrigante é a brincadeira metalinguística com o próprio ato de pensar, de escrever ficção, com acontecimentos dos episódios anteriores e com a vida e obra de Conan Doyle. Há problemas (principalmente, uma visão equivocada do feminismo). Mas, no fim, deixou o gostinho de que a série pode voltar a ser divertida.

5) Master of None

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Aziz Ansari foi inteligente em criar e estrelar uma série cômica que não fosse estúpida, como The Big Bang Theory, nem escrota, como South Park. Ele calibrou os riscos da empreitada, entregando uma produção diferente, mas que não deixasse de ser fofa, de criar empatia. O que Ansari traz de novo à comédia romântica é a visão de um protagonista que não é branco. É muito interessante ver um cara, descendente de indianos, tentando viver uma vida normal. Claro que temas importantes como racismo, misoginia, feminismo e estereótipos culturais estão presentes na série, em destaque. Porém esses temas são trabalhados de maneira orgânica no roteiro, sem parecer forçado e sem perder sua urgência. A série tem uma pegada pop, com uma pitada hipster, cheia de ótimas músicas. É uma atração leve. Alguns diriam leve demais para um mundo em explosão, considerando a intolerância a minorias e culturas não brancas. Mas a série não é desonesta. Entrega o que propõe, sem ser esquecer o contexto diverso e complicado em que vivemos.

4) Stranger Things

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A série sensação de 2016 foi uma surpresa que ninguém tinha previsto. Depois do lançamento na Netflix, o boca-a-boca incendiou a internet. Os criadores, os irmãos Duffer, fizeram direitinho o dever de casa. É uma nostalgia da cultura pop dos anos 80 que eles não vivenciaram, por serem mais novos, mas que convence. A trilha sonora original é ótima, lembrando as de John Carpenter, assim como as músicas de artistas da época. Destaque também para os efeitos sonoros e a edição de som. Há problemas de roteiro, o horror não assusta tanto, porém o mistério estimula a gente a ir logo para o episódio seguinte. E os personagens mirins arrasam. É uma produção que tem o passado como conteúdo, mas que, em termos de formato, mostra os novos rumos da TV.

3) Luke Cage

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O verdadeiro poder da série é mostrar como a cultura pop pode abordar temas relevantes de uma maneira acessível. O foco aqui está na questão da negritude, de como é ser negro num mundo racista. O criador da série, Cheo Hodari Coker, teve a benção da Marvel para mostrar sua visão, mas seguindo certas regras. Mesmo assim, ele conseguiu realizar a produção mais adulta da Casa das Ideias até agora. A série empolga mais do que decepciona. É vibrante e autêntica. A ação pode não ser tão coreografada como na série do Demolidor. Mas acompanhamos alguns dos diálogos mais afiados da TV ou do cinema americano recente. Outro destaque são as personagens femininas. Mulheres negras em posições de poder, sejam heroínas ou vilãs, com atitudes que desafiam estereótipos. Luke Cage é um poderoso manifesto pop. Como um rap que diz a real entre uma batida e outra.

2) Mr. Robot

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A primeira temporada expõe as vísceras das megacorporações, a razão de ser do capitalismo. A série tem um clima cyberpunk, tantos pelas ideias anti-establishment como pela estética soturna. É um retrato realista da cultura hacker (na medida do possível, segundo especialistas). É a série pop mais tensa dos últimos tempos. A trilha sonora eletrônica retrô de Mac Quayle é decisiva para causar esse efeito. E as músicas de artistas de décadas anteriores, como Echo and The Bunnymen, Pixies, Tangerine Dream e Neil Diamond, contribui para reforçar o tom de ironia nervosa, de desconforto com os tempos atuais. Os roteiros possuem diálogos perturbadores e a trama se desenvolve fugindo de clichês, com reviravoltas convincentes e que deixa o espectador sem chão. Eliott, o hacker protagonista, vivido por Rami Malek, incorpora monstruosamente bem a atmosfera de desesperança e paranoia da série. À medida que os episódios avançam, você reconhece referências de filmes que todo mundo já viu. Mas o criador, Sam Esmail, também se inspirou no mundo real, no Movimento Occuppy, na Primavera Árabe, na era pós-Snowden. Em termos de produção e narrativa, a série é praticamente perfeita. Mas há uma contradição de fundo, no mínimo, estranha: como considerar a autenticidade de uma série sobre derrubar o sistema que é financiada por um canal de TV pertencente a uma corporação de mídia?

1) Westworld

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Apesar das incertezas do público e da própria HBO antes do lançamento, Westworld se tornou a melhor série do ano. A produção foi interrompida, a data de estreia adiada. Geralmente, atrasos são sinônimos de problemas. Mas, agora sabemos, a pausa serviu principalmente para aprimorar os rumos da série. Os criadores Lisa Joy e Jonathan Nolan conseguiram superar expectativas. Westworld é o ápice da TV, em termos de produção e proposta. E mostra que a HBO não está morta, mesmo com a perda de espaço para serviços de streaming como a Netflix. E que o formato do episódio semanal ainda funciona, criando um buzz potente.

Os criadores da série conseguiram tirar leite de pedra de uma premissa muito básica (a interação de humanos e robôs num parque temático do velho oeste no futuro). As possibilidades narrativas eram inúmeras. Ao invés de se perder, o casal Joy/Nolan fez escolhas interessantes e corajosas. Souberam misturar, na medida certa, discussões filosóficas, antropológicas e sociais com uma trama envolvente.

O sucesso de Westworld se deve também ao alto nível da produção. Fotografia, direção de arte, figurinos, locações, trilha sonora, efeitos especiais e sonoros transformaram a atmosfera da série em algo complexo e excitante. E as atuações foram o que ganharam de vez o espectador. Personagens muito bem desenvolvidos e interpretados. Anthony Hopkins deu um show, provando que ainda está em forma. Outros atores tiveram as performances de suas vidas, como Jeffrey Wright , Thandie Newton e Evan Rachel Wood. E eu nunca vi Rodrigo Santoro tão bem! Westworld veio para ficar e explodir nossas cabeças.

EVOLUÇÃO DA FC NACIONAL

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Aline Valek fez uma aposta ousada em sua estreia como romancista. As águas-vivas não sabem de si é uma obra de ficção científica com o apuro da chamada alta literatura. Algo bastante incomum nas letras nacionais.

Corina é uma mergulhadora experiente, contratada por uma empresa para testar trajes no mar profundo. Na estação Auris, ela se junta a uma equipe formada por outro mergulhador e pesquisadores. Durante o confinamento, Corina desconfia que há uma missão maior em curso. Ao mesmo tempo, ela também tem algo a esconder.

Logo nas primeiras páginas é inevitável lembrar de filmes como O Segredo do Abismo e Esfera. Os mistérios do oceano ampliados por uma assustadora presença além da compreensão humana. O fundo do mar é um universo em si, ainda bastante inexplorado. Causa tanto fascínio quanto o espaço sideral. Muitas vezes, sua fauna e flora são vistas como coisas de outro mundo.

A ideia do romance não é original, mas Aline Valek quer seduzir o leitor pela maneira de contar a história. Sua intenção é bem-sucedida em parte. Ao escrever o livro, ela tinha nas mãos um cenário com muito potencial para criar uma ficção cativante. Aproveitando a escuridão e a luminescência, essa atmosfera seria perfeita para elaborar uma leitura imersiva, em que cada linha, cada parágrafo, transmitisse a beleza e o perigo daquele lugar.

Essa tensão deveria ser predominante. Porém, os conflitos pessoais e com o ambiente perdem força em certos trechos. Páginas e páginas são preenchidas com digressões dos personagens,  estendendo-se além do necessário. Outro recurso que quebra o ritmo da leitura é dar a alguns animais a condução da narrativa, mostrar o ponto de vista deles, suas observações da ação humana.

Ao longo do romance, há uma oscilação entre um texto maduro e outro, descuidado. Os melhores momentos são quando a interação dos personagens funciona, os pensamentos de cada um têm algo relevante a manifestar, o desenvolvimento da trama convence, a pesquisa da autora sobre aquele mundo envolve o leitor e a prosa está tão afiada, cada frase tão bem construída, que soa como poesia. Nos piores momentos, quase nada funciona, podendo estimular alguém a abandonar o livro.

Pelo fato do cenário ser muito recortado, a estação Auris e o entorno dela, e do pequeno número de personagens, as possibilidades de enredo são reduzidas.  Um texto mais curto poderia reunir apenas o que houvesse de melhor no romance.

A editora Rocco caprichou na edição física. É um dos livros mais bonitos lançados em 2016. Capa e miolo.

Ao final da leitura, fica a certeza de que As águas-vivas não sabem de si é um livro corajoso e pioneiro. É um romance que renova a ficção científica nacional e, ao mesmo tempo, procura se comunicar com um contexto literário mais amplo.

As Águas-Vivas não Sabem de Si, de Aline Valek, 296 págs., Rocco.

AVALIAÇÃO: RUIM, REGULAR, BOM, MUITO BOM, EXCELENTE