ESTOU PENSANDO EM ACABAR COM ESSE FILME

O filme Estou pensando em acabar com tudo se tornou um queridinho da crítica. Charlie Kaufman é um roteirista brilhante e um diretor talentoso. Seus roteiros dos filmes Quero ser John Malkovich, Adaptação e Brilho eterno de uma mente sem lembranças são inovadores. A animação Anomalisa é uma pungente meditação sobre a condição humana. Mas seu último filme como diretor e roteirista deixa a desejar.

É a adaptação do romance de mesmo nome. O livro é um filme thriller envolvente que derrapa feio no final por trazer uma grande revelação que causa surpresa, mas não faz muito sentido com tudo o que veio antes. No filme, mesmo para quem não leu o livro, fica claro, desde o início, do que se trata. Kaufman aposta no surrealismo e no nonsense para que o espectador acompanhe a jornada emocional dos personagens.

Há bons momentos de interação entre eles e soluções visuais instigantes que materializam ideias e sentimentos. Mas, quando o filme não funciona, torna-se pretensioso e repetitivo. O elenco está muito bem, mas irrita ou nos deixa entediados nos excessos do roteiro. A duração de mais de duas horas não ajuda em nada.

O valor de produção está lá. Bela fotografia, montagem eficiente e a direção de arte mostra toda a bizarrice que se enconde num ambiente de aparente normalidade.

Estou pensando em acabar com tudo é praticamente obrigatório para os fãs de Charlie Kaufman. Para o resto da humanidade, a conferida é uma opção.

A MALANDRAGEM COMO SOBREVIVÊNCIA

1 alô amigo

Como mostra o livro O Imperialismo Sedutor, de Antônio Pedro Tota, durante a Segunda Guerra Mundial, houve esforços dos EUA para conquistar corações e mentes dos povos e, principalmente, dos governos da América do Sul. Em especial, do Brasil, por sua posição geográfica estratégica no continente e pelos recursos naturais importantíssimos para a indústria americana, como a borracha amazônica. Walt Disney fez sua parte, tentando aproximar norte-americanos e sul-americanos pela valorização das culturas dos países latinos mais importantes para os gringos. O média-metragem Alô, Amigos (1942) e o longa Você Já Foi à Bahia? (1944) fazem passeios por alguns destes países, mostrando costumes, paisagens, floras, faunas, comidas, danças e cantos, tudo de maneira leve, exuberante e bem humorada. Há belíssimas sequências, mesclando animação e música, no que a Disney sabe fazer de melhor. Mas nenhum dos dois filmes são marcantes. No geral, trazem histórias enfadonhas, datadas e cheias de estereótipos. Os melhores segmentos, em cada filme, são realmente os do Brasil. É inegável que a estrela de ambos é Zé Carioca, ou Joe Carioca. São segmentos que não fogem ao exotismo, mas que, no fundo, mostram o que é ser brasileiro, particularmente, carioca e baiano. Afinal, o estereótipo é uma maneira de distorcer a realidade. Nesses filmes, não se revelam a pobreza do Brasil, a repressão política de Getúlio Vargas, os interesses econômicos dos americanos. Nem a capoeira, os terreiros, as navalhas. Aqui baianas e malandros são todos brancos.

Temos então o conto Alô, Amigo! O Encontro de Zé Pelintra com Walt Disney, o primeiro da série Nordeste Alternativo, do autor baiano César Miranda. Estamos no Rio de Janeiro da década de 1920, Walt Disney está no Brasil em busca de inspiração. Ele acaba conhecendo Zé Pelintra, com seu chapéu de malandro e terno branco impecável, uma entidade das mais difundidas nas religiões afro-brasileiras, especialmente na umbanda. Zé Pelintra convida Val para conhecer o verdadeiro Rio de Janeiro, o Rio além dos pontos turísticos tradicionais. É um conto divertido, mas nenhum pouco ingênuo. Mostra a malandragem como uma questão de sobrevivência. O texto é muito maduro, no ritmo e na sintaxe, no que parece ser a estreia do autor. A pesquisa da época é inserida de maneira sutil, sempre a serviço da trama. No final da leitura, o saldo que fica é de um gosto na boca de Jorge Amado 2.0. Um gosto bom. O Jorge Amado da consciência social e da valorização da cultura popular. Jorge Amado em suas qualidades e contradições. O autor César Miranda ganhou mais um fã de seu trabalho.

Olá, amigo! O encontro de Zé Pelintra com Walt Disney (Nordeste Alternativo livro 1), de César Miranda, 36 págs., independente

AVALIAÇÃO: RUIM, REGULAR, BOM, MUITO BOM, EXCELENTE

O HOMEM INVISÍVEL – TERROR DA VIDA REAL

O-Homem-Invisível-2020-600x400

O que os homens podem aprender com o filme O homem invisível? Porque o problema do machismo, da masculinidade tóxica e da relação abusiva é nosso, dos homens. Sem a gente na jogada, as mulheres deixariam de sofrer a ameaça física e psicológica de namorados, maridos, chefes, colegas de escola, de trabalho ou de qualquer cara que passasse na rua, tendo seus comportamentos nocivos normalizados por um sistema social que inferioriza as mulheres. Pior, que as culpa por serem independentes, por se vestirem do que jeito que bem entender, por escolherem seus parceiros e parceiras, chegando ao ponto de criminalizar e tirar delas as decisões sobre o próprio corpo. Uma mulher sai de casa pela manhã para estudar, trabalhar ou ir na esquina comprar pão e não sabe se retornará sem sofrer um assédio moral, sexual, uma violência física ou com a vida intacta.

A grande sacada da nova versão de O homem invisível foi fazer um suspense de primeira, um entretenimento muito competente, que, ao mesmo tempo, nos faz refletir sobre um tema tão atual.

O filme preserva alguns elementos do romance clássico de H.G. Wells, publicado em 1897, como a arrogância do cientista e suas pesquisas no campo da óptica. Assim como a ideia do terror social provocado pela condição do homem invisível. De resto, a trama do filme é uma criação do diretor e roteirista Leigh Whannell.

A situação do relacionamento abusivo é muito bem trabalhada, na medida em que o tema se insere nos desdobramentos da história de forma orgânica, casando acertadamente a maneira de contar a história e o que ela pretende discutir, seja pela fala dos personagens, seja pelas cenas de tensão e violência.

O homem invisível conta com a produção da Blumhouse (que também produziu o filme Corra! que fala de racismo de uma maneira inovadora) e com o talento da atriz Elisabeth Moss (a protagonista da série The handmaid´s tale), que carrega o filme nas costas, mostrando toda a fragilidade de uma mulher traumatizada pela violência doméstica, mas também revelando força e determinação quando necessário.

Destaque também para a montagem precisa, a fotografia que provoca aflição com tomadas abertas e espaços vazios, a direção de arte frequentemente sugestionando a presença do homem invisível, o design de som que mexe com as tensões do espectador e a trilha sonora ora sutil, ora potente, empregada nos momentos certos. Há problemas? Claro, furos de roteiro, falta de desenvolvimento de personagens, atuações medianas e, principalmente, o clímax convencional, em que o eficiente suspense dá lugar a um tipo de ação, de correria, já vista em outras produções.

O fascinante em O homem invisível é utilizarem os recursos do terror psicológico para criar uma alegoria tão contundente, tão incômoda. O homem invisível transforma a vida da mulher que ele ama num inferno, no que atualmente chamamos de gaslighting, que é uma maneira do abusador manipular a percepção da realidade da vítima ao ponto dela duvidar da própria sanidade, levando outras pessoas a fazer o mesmo.

O terror do filme é de dar nos nervos por ser tão real.

O homem invisível (The invisible man, 2020), de Leigh Whannell, 124 min., Blumhouse, Universal e outros

AVALIAÇÃO: RUIM, REGULAR, BOM, MUITO BOM, EXCELENTE

OS 6 MELHORES LIVROS QUE LI EM 2019

livros 2019

6 – A telepatia são os outros, de Ana Rüsche: Irene, uma fisioterapeuta brasileira de meia-idade, vai para o Chile de férias e acaba no meio de uma trama tensa e intensa, envolvendo a indústria farmacêutica, um misterioso grupo de pesquisadores e um chá que possibilita a conexão de mentes. Essa novela traz algo novo para a ficção científica nacional e é uma ótima porta de entrada para conhecer o gênero. Em suas poucas páginas, há um mar de informações, mas nada é jogado aleatoriamente. Há rigor na pesquisa da autora. E leveza em sua imaginação, ao criar personagens e situações que se vinculam com a obra de uma Ursula K. Le Guin, por exemplo, outra autora de ideias questionadoras do estado das coisas, imbuída de uma criatividade “ecológica”, digamos assim, de busca do melhor entendimento entre ser humano e natureza. Ana Rüsche também é poeta, o que fica evidente em algumas passagens, elevando a beleza e os significados de sua prosa.

5 – The Pisces, de Melissa Broder: Certa noite, sozinha na praia, Lucy, uma acadêmica de quase quarenta anos, conhece Theo, um nadador deslumbrante de vinte e poucos. Para espanto e admiração dela, ele acaba se revelando um sereio. O que faz desse romance uma leitura envolvente é a voz narrativa. Lucy conta sua história em primeira pessoa, revelando com muita honestidade e ironia seu caos emocional. Fala-se de amor, sexo, carreira, maternidade, expectativa social e outros temas caros às mulheres, sob a perspectiva de alguém que questiona tudo e todos. The Pisces fala sobre uma mulher no limite justamente por não saber direito seu lugar no mundo.

4 – Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior: Itamar é o mais importante autor baiano da atualidade. Vencedor da última edição do Prêmio Leya, seu romance teve extensa cobertura da mídia portuguesa. Lançado no Brasil pela editora Todavia, a carreira de sucesso do livro continuou. Com certeza, em 2020, será um forte concorrente aos principais prêmios literários do país. Itamar segue a tradição dos grandes autores baianos em aliar inquietação política e filosófica com apuro literário. Em Torto Arado, o foco é a gente sofrida, os desassistidos, as minorias, os invisíveis sociais. Mas o autor descarta naturalismos fáceis. Numa prosa fluente e ritmada, cheia de uma poesia dura e contundente, acompanhamos a histórias de duas irmãs, Bibiana e Belonísia, mulheres negras, da zona rural. O triunfo literário do romance é construção da visão de mundo das protagonistas. Apesar das enormes dificuldades da vida, das explorações e humilhações, ambas são pessoas de “carne e osso”, conscientes de suas limitações e possibilidades. Essa atmosfera lembra muito o cinema e a literatura italiana dos anos 1960 e 1970, que representava a tomada de consciência política do proletariado. Em Torto Arado, vemos uma perspectiva “de dentro”, o protagonismo do povo negro rural, sem intermediários, digamos assim. Fruto de primorosa pesquisa, e mais do que isso, fruto da sensibilidade do autor, que faz um resgate de parte das origens do Brasil, ligando passado e presente.

3 – A Parábola do Semeador, de Octavia E. Butler: Acompanhamos os Estados Unidos no futuro, após uma crise ambiental e econômica, em que comunidades com melhores recursos se fecham por trás de muros. Há uma tentativa de levar uma vida normal num mundo em convulsão, com escolas, empregos e relações sociais e familiares, mas a tensão é constante. Por meio do olhar afiado da jovem Lauren Olamina, acompanhamos pessoas tendo de fazer escolhas difíceis, passando por dilemas para manter sua humanidade. A própria Lauren sofre bastante com os acontecimentos. Ela tem um poder de hipersensibilidade, que a faz absorver a dor física alheia. Em meio a tanta violência, incerteza e desesperança, Lauren resolve criar uma nova religião, que promove a comunhão entre o ser humano e a natureza. A tradução preserva o ritmo e a força do texto original.

2 – Use of Weapons, de Iain M. Banks: A série de ficção científica The Culture é composta por livros independentes (com alguns pontos de ligação) dentro de um mesmo universo. The Culture é uma sociedade no futuro, numa galáxia distante, em que humanos aprimorados e inteligências artificiais convivem numa espécie de sociedade utópica. Mas isso não quer dizer que não existam relações complexas, disputas entre pessoas e máquinas. Em Use of Weapons, considerado o terceiro livro da série, acompanhamos uma trama de espionagem política. O romance é conhecido por sua estrutura narrativa de cair o queixo, com duas linhas temporais, uma que avança no tempo e outra que recua até a infância do protagonista. E pela chocante revelação final. Melhor dizendo, pelas duas revelações finais. E uma delas tem a ver com uma cadeira. Use of Weapons é uma meditação brutal, cheia de uma poesia melancólica e uma ironia afiada, sobre a vontade de subjugar, seja no âmbito pessoal ou coletivo.

1 – As coisas que perdemos no fogo, de Mariana Enriquez: A autora argentina apresenta ao leitor brasileiro um dos livros de ficção mais impactantes da última década. Os seus contos investem no terror de forma visceral. É assustador porque os horrores do cotidiano da classe média e da periferia de Buenos Aires e da história recente da Argentina são transformados numa literatura claustrofóbica, ampliando significados e efeitos do comportamento humano e de mazelas sociais e políticas. Aqui o foco são meninas e mulheres. As protagonistas estão à vontade na posição de gente branca com algum dinheiro, mesmo que meio decadente. Mas Enriquez nunca é leviana. Aliás, é por meio de sua consciência de classe e de gênero que ela aperta os botões certos para nos apavorar. Estas protagonistas geralmente se colocam em situações perturbadoras, testemunhas do que há de pior na sociedade. Em ritmo de suspense, cada conto nos envolve e desestabiliza, à medida que avançamos em atmosferas pesadas, em lugares sujos, sombrios e abandonados, habitados por personagens trágicos. A bela edição da editora Intrínseca, com tradução e revisão impecáveis, não nos distrai, não nos deixa sair desse mundo. Leitura para estômagos fortes.

 

OS 6 MELHORES FILMES QUE VI EM 2019

 

filmes 2019

6 – Nós (2019), de Jordan Peele: Jordan Peele conseguiu de novo. Entregou ao espectador mais um filme de impacto, tanto do ponto de vista estético quanto reflexivo. Corra! é mais coeso, mas mesmo assim Nós mostra uma evolução de Peele como cineasta. O primeiro terço do filme tem um ritmo impressionante. Praticamente nada acontece, mas o que vemos tem uma fotografia tão elaborada, uma montagem tão cadenciada e diálogos e atuações tão marcantes, que não importa. Acompanhamos o cotidiano da família protagonista com um sorriso besta na cara, sem desejar que nada se apresse. A influência de Hitchcock é evidente, o diretor que construía seus suspenses sofisticados para o público médio como um reflexo apavorante desse mesmo público. E quando a violência começa, nos deparamos com um dos filmes de terror mais criativos e perturbadores dos últimos tempos. Uma mistura de homenagem e subversão ao cinema de horror dos anos 70 e 80. Nós é algo inédito no cinema em geral, por trazer uma nova perspectiva, uma nova voz para Hollywood, confirmando o talento de Jordan Peele como um mestre do terror.

5 – Homem-Aranha no Aranhaverso (2018), de Bob Persichetti, Peter Ramsey e Rodney Rothman:  Saí chocado do cinema depois de ver esse filme. Achei isso no calor do momento e reafirmo quase um ano depois: é o melhor filme de super-herói de todos os tempos. A técnica de animação é incrível, praticamente uma HQ em movimento. O arco de Miles Morales é vibrante e emocionante. Peter B. Parker é uma maravilhosa desconstrução do Homem-Aranha. E ainda de quebra tivemos um dos grandes super-vilões da telona: Prowler. Que tema musical é aquele! E a cena pós-crédito é hilária, abrindo possibilidade para uma baita continuação. Oscar merecidíssimo.

4 – Suspiria (2018), de Luca Guadagnino: Nem sempre um remake é uma perda de tempo, um crime contra a obra original. Suspiria, de 1977, é um clássico do terror italiano, do giallo, o filme mais celebrado do mestre Dario Argento. Em 2018, o também italiano Luca Guadagnino, diretor do aclamado “Me chame pelo seu nome”, lançou uma nova versão de Suspiria. No final das contas, Guadagnino se saiu muito bem da enrascada em que se meteu. Justamente por ter sido infiel à obra original. A premissa é a mesma. Uma estudante de balé americana vai para uma prestigiada academia na Alemanha Ocidental dos anos 1970 e coisas bizarras começam a acontecer. Mas Guadagnino opta por fazer um filme feminista e político (uma espécie de resposta contemporânea ao giallo, um subgênero bastante machista), com um gore mais “realista” e visceral. Mostra uma crueldade feminina implacável. Porque, mesmo no grotesco, há sabedoria, beleza e libertação.

3 – Em Chamas (2018), de Lee Chang-dong : É um suspense perturbador justamente porque nos colocar para pensar, para preencher as lacunas deixadas pelo caminho. É um filme lento, mas com uma tensão crescente, que nos desestabiliza ao acrescentar mais e mais mistérios ao invés de solucioná-los. Nas entrelinhas, Em Chamas diz muito sobre o estado das coisas do capitalismo. De um lado, há as incertezas do jovem pobre e sem emprego, alguém praticamente descartável. Do outro, a total falta de empatia das classes mais abastadas. A produção é primorosa em sua simplicidade. A montagem é precisa, a fotografia eleva o cotidiano, e os personagens falam o estritamente necessário.

2 – Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dorneles: Bacurau é um filmaço. Irregular, mas feito com muito tesão. Cheio de consciência estética e política. Os diretores reconhecem e enaltecem a influência do cinema de gênero (terror, western, thriller, ficção científica). Citam mestres como John Carpenter, George Romero, Sergio Leoni, Sergio Corbucci e Sam Peckinpah. Mendonça e Dornelles bebem de todas essas fontes para apresentar um filme vibrante em seus melhores momentos. É divertido, tenso, movimentado e reflexivo. A verdadeira protagonista é a cidade de Bacurau, com seu povo, sua história, seu senso de comunidade, escassa de recursos (onde falta água, mas há internet), politicamente madura, em prol da diversidade. Uma utopia possível encravada no sertão pernambucano, ameaçada por um poder vil que recusa a dizer seu nome.

1 – Parasita (2019), de Bong Joon-ho:  Os filmes de Bong Joon-ho são obras de arte, de reflexão numa roupagem de entretenimento. Ele quebra as barreiras do cinema de autor e do cinema comercial. Para ele, se divertir e pensar são dois lados da mesma moeda. Parasita é seu filme mais maduro por ser o mais paciente em nos envolver em suas ideias. A tensão é pontual. Mas quando surge nos desarma por completo. Na verdade, a grande sacada de Parasita é a quebra de nossas expectativas. Há vários filmes em um só. Comédia, suspense, drama, terror. O diretor alterna a condução da trama entre esses gêneros com extrema habilidade e nunca de forma gratuita. Temos aqui mais um exemplo de filme sul-coreano que faz uma crítica devastadora da desumanização do capitalismo.

AS 6 MELHORES SÉRIES QUE VI EM 2019

séries

6 – The Boys, 1ª temporada (2019): O Watchmen de Alan Moore mostrou os super-heróis como figuras melancólicas, com um senso de justiça distorcido e deprimente. Na série The Boys, os super-heróis são um pesadelo camuflado em camadas de marketing. São psicopatas vaidosos a serviço de grandes corporações. Mesmo considerando que a série foi produzida pelo serviço de streaming de um cara com a maior pinta de vilão de quadrinhos, Jeff Bezos, o dono da Amazon, The Boys é divertido e faz um retrato brutal do mundo das celebridades.

5 – Devilman Crybaby, 1ª temporada (2018): Anime definitivamente para adultos. Há exageros em sua violência tão gráfica, mas a escatologia desse universo se encaixa muito bem na reflexão sobre os “demônios” da condição humana. A técnica de animação, psicodélica e de traços imprecisos, mostra a instabilidade emocional dos personagens, acompanhada por uma trilha sonora tecno vibrante. O finale da série nos pega de surpresa. É, ao mesmo tempo, tão bonito e tão triste.

4 – The Mandalorian, 1ª temporada (2019): Lobo Solitário no espaço, com pitadas de Sérgio Leone. Tinha tudo para dar errado, mas deu muito certo. A série mistura elementos consagrados da franquia com novos personagens e uma história distante dos Skywalkers. Resgata o clima de aventura e simplicidade da trilogia original, mas acaba apresentando a versão mais violenta de um produto live-action de Star Wars. Personagens cativantes, efeitos especiais insanos para uma “série de TV”, fan service bem feito e uma trilha sonora que evoca Ennio Morricone.

3 – Undone, 1ª temporada (2019): Essa série deixaria Philip K. Dick orgulhoso. Trata-se de um mergulho profundo na mente da protagonista. Após um acidente de carro, Alma descobre que pode se comunicar com seu pai morto, um cientista, e viajar no espaço-tempo. Ou não? O humor de Alma é afiado, o que incomoda muita gente. E ela mesma sofre com sua instabilidade emocional. A técnica de rotoscopia, de animação dos movimentos dos atores, dá muita liberdade para os criadores da série pirarem, em mudanças inusitadas de cenários e ritmos de edição. Outro triunfo de Undone é a representatividade. O elenco é diverso. E a surdez e a ascendência mexicana de Alma são elementos centrais da trama.

2 – Fleabag, 2ª temporada (2019): Eu sou fanboy de Phoebe Waller-Bridge. E é em Fleabag que a vimos no seu auge. Na 2ª temporada, a protagonista, que adora se sabotar, mete o pé na jaca de vez. A franqueza da personagem é cativante e divertidíssima. Ao mesmo tempo, a série é triste pra burro. Porque nos identificamos com os problemas de Fleabag: a dificuldade de conexão com os outros, o alto preço pago por quem desafia as convenções sociais e as dúvidas de nosso lugar no mundo. Fleabag não quer ser um exemplo de mulher para ninguém, só quer ser ela mesma. Estou na torcida para que Waller-Brigde mude de ideia e faça uma 3ª temporada. De qualquer maneira, a personagem teve um final arrebatador em sua simplicidade e significado.

1 – Atlanta, 2ª temporada (2018): Donald Glover é um artista multitalentoso, ator, cantor, produtor, roteirista, diretor. Mas é como o criador de Atlanta que ele mostra todo o seu potencial. Ele quebra paradigmas ao apresentar uma série escrita, produzida e protagonizada por pessoas negras. Uma série tão sofisticada quanto os melhores exemplos da era de ouro da televisão, ocorrida nos últimos vinte anos. A verdade é que a excelência da televisão americana sempre foi dominada por produtores e roteiristas brancos. Atlanta alia ousadia narrativa ao flertar com o surrealismo e o terror e maturidade temática ao tratar de questões sociais, particularmente da condição do negro americano, desconhecido ou famoso, conectando tudo com a autorreflexão, dando profundidade aos personagens. Além de existir um aprimoramento na produção (fotografia, montagem, estrutura de roteiro etc.). Cada vez mais, Atlanta merece uma posição ao lado de séries icônicas como Madmen, Sopranos, The Wire e Breaking Bad.

BACURAU, UM MANIFESTO DE RESISTÊNCIA

bacurau

Bacurau é um filmaço. Irregular, mas feito com muito tesão. Cheio de consciência estética e política. Porém, para surpresa geral, os diretores afirmam que a violenta trama de resistência não foi pensada como uma metáfora para os atuais tempos sombrios. De fato, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles tiveram a ideia de fazer Bacurau há dez anos, com o roteiro sendo trabalhado nos últimos três.

Os diretores reconhecem e enaltecem a influência do cinema de gênero (terror, western, thriller, ficção científica). Citam mestres como John Carpenter, George Romero, Sergio Leoni, Sergio Corbucci e Sam Peckinpah. Uma intenção evidente de Mendonça e Dornelles é fazer um filme de gênero como metáfora política, mesmo que não que seja colada à indigência vigente, pensando na crise da sociedade brasileira como um processo histórico em andamento. (Mas, no fim das contas, os significados e interpretações fogem do controle de seus autores, como em qualquer obra artística, e, sim, Bacurau é uma manifesto de resistência do povo nordestino contra os fascistas locais, do sul maravilha e estrangeiros.)

Carpenter refletiu sobre a crise capitalista nos EUA dos anos 70 e 80, em Assalto ao 13º Distrito e Eles Vivem. Romero refletiu sobre a tensão social gerada pelo movimento dos direitos civis nos anos 60, em A Noite dos Mortos Vivos. Peckinpah fez algo semelhante com as consequências da guerra do Vietnã, em seu western tardio Meu Ódio Será Sua Herança. E Corbucci, membro do partido comunista italiano, pensou nos movimentos revolucionários espalhados pelo mundo dos anos 60 e 70 ao criar seus Zapata westerns.

Mendonça e Dornelles bebem de todas essas fontes para apresentar um filme vibrante em seus melhores momentos. Bacurau está em cartaz em várias salas pelo Brasil, ganhando espaço no circuito comercial, não se restringindo ao circuito de arte. Pode ser visto por qualquer pessoa. É divertido, tenso, movimentado e reflexivo. O que pode afastar muitos espectadores é a opção, totalmente válida dos diretores, de quebrar expectativas. Bacurau é ação, mas não é. É suspense, mas não é. É gore, mas não é. Há uma constante mudança de propostas. O que para uns pode ser irritante, para outros pode ser desafiador.

É uma obra aberta que estimula diversas interpretações. Contudo, certas inconsistências no roteiro e os rumos tomados no ato final criam um sentimento conflitante na gente. Adoramos o clímax por sua potência, mas, em paralelo, o odiamos pelo ritmo canhestro, pela cinematografia mais pobre. Mesmo que o embate final seja um jogo metalinguístico, carece de mais esmero, algo que foi melhor executado em filmes de John Woo, por exemplo.

A população de Bacurau é marcante (Lunga, Domingas, Pacote, Teresa, Plínio, Damiano, Maciel, Flávio, Sandra, o violeiro gaiato…), só que não espere muito desenvolvimento de nenhum personagem. Isso fica pelo caminho. Mas o que é mostrado se torna suficiente para nos conquistar. Torcer por eles. Sofrer com eles. A verdadeira protagonista é a cidade de Bacurau, com seu povo, sua história, seu senso de comunidade, escassa de recursos (onde falta água, mas há internet), politicamente madura, em prol da diversidade. Uma utopia possível encravada no sertão pernambucano, ameaçada por um poder vil que recusa a dizer seu nome.

Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 132 min., SBS, Cinemascópio, Globo Filmes

AVALIAÇÃO:
RUIM, REGULAR, BOM, MUITO BOM, EXCELENTE

SUSPIRIA, FAZER DE NOVO NEM SEMPRE É REPETIR

suspiria 6

Nem sempre um remake é uma perda de tempo, um crime contra a obra original. Suspiria, de 1977, é um clássico do terror italiano, do giallo, o filme mais celebrado do mestre Dario Argento. Em 2018, o também italiano Luca Guadagnino, diretor do aclamado Me chame pelo seu nome, lançou uma nova versão de Suspiria. No final das contas, Guadagnino se saiu muito bem da enrascada em que se meteu. Justamente por ter sido infiel à obra original.

A premissa é a mesma. Uma estudante de balé americana vai para uma prestigiada academia na Alemanha e coisas bizarras começam a acontecer.

O filme de Argento é famoso por sua atmosfera arrepiante e estilosa. Pelo uso de cores primárias, principalmente o vermelho, na direção de arte e fotografia e pela trilha sonora com um rock progressivo, ao mesmo tempo, feérico e macabro. O roteiro é bastante básico e as atuações apenas satisfatórias.

A maior crítica que se pode fazer ao filme (e ao giallo em geral) é o seu sadismo contra as mulheres, pela maneira como morrem, assassinadas violentamente por mãos masculinas, além de mostrá-las como frágeis ou megeras, de maneira bidimensional. E tudo isso mesmo tendo uma protagonista feminina.

Já no remake, há um feminismo muito presente, inclusive, sem a preocupação de mostrar as mulheres como simpáticas. As personagens do novo filme metem medo porque elas têm plena consciência de seu poder. Aqui os homens são os inimigos, os fracos.

Guadagnino foi ambicioso ao ampliar o contexto desse remake. Assim como no original, ele se passa na Alemanha Ocidental da década 1970. Mas Guadagnino procura discutir traumas políticos do passado, relacionados à Segunda Guerra Mundial, e daquele presente, por meio da tensão social causada pelas ações da organização Fração do Exército Vermelho (RAF), mais conhecida como Grupo Baader-Meinhof. Ao invés de tirar o espectador da trama, essas preocupações extras aprofundam a experiência, porque o passado das mulheres da academia de balé tem a ver com repressão e perseguição ao longo da História, contra a plena liberdade delas.

Esteticamente, o remake envolve e assusta. Não se parece em nada com a ambientação estilizada do Suspiria de Argento, artificial, criada em estúdio. E sim com os filmes alemães do período, de cineastas como Fassbinder, Wenders, Herzog, von Trotta e outros. As cores são lavadas e os cenários, sóbrios, realistas.

O Suspiria de Argento fascina pelo clima de delírio, pelo simbólico sobre o subterrâneo da condição humana. E o remake seduz pelo grotesco mais visceral, uma metáfora da condição da mulher contemporânea. Mostra uma crueldade feminina implacável. Porque, mesmo no grotesco, há sabedoria, beleza e libertação.

Como bônus, Tilda Swinton arrasa em dois papeis completamente diferentes, pelo menos.

Suspiria (1977), de Dario Argento, 98 min., Seda Spettacoli 

AVALIAÇÃO: RUIM, REGULAR, BOM, MUITO BOM, EXCELENTE

Suspiria (2018), de Luca Guadagnino, 153 min., K Period Media e outros

AVALIAÇÃO: RUIM, REGULAR, BOM, MUITO BOM, EXCELENTE

TRILOGIA BINTI: UMA JORNADA NOTÁVEL

binti

A autora estadunidense, de ascendência nigeriana, Nnedi Okorafor disse, certa vez, que, como não havia ficção para ela ler sobre a África no futuro, ela resolveu escrever suas próprias histórias. A trilogia Binti é um excelente exemplo desse projeto.

Na primeira novela, somos apresentados a Binti, uma garota muito curiosa, matemática brilhante e filha de um fabricante de astrolábios. Ela faz parte do povo Himba, na Terra. Um povo que dá valor ao conhecimento, mas muito fechado em si, bastante apegado às tradições. Quando Binti decide viajar para outro planeta, onde se encontra a universidade mais prestigiosa da galáxia, gera-se uma crise familiar. Os poucos Himba que deixam sua comunidade se tornam párias.

Na nave que a leva, Binti é a única pessoa do povo Himba a bordo, com otjize espalhada pelo rosto e tranças, uma espécie de argila vermelho-alaranjada, símbolo fundamental em sua cultura.

Binti se sente novamente dividida com o acolhimento de um grupo de estudantes, futuros colegas de universidade (depois de um estranhamento inicial) e a curiosidade espantada e racista de tripulantes e passageiros, gente Koush, um povo humano dominante. Então acontece uma reviravolta sanguinolenta. A viagem espacial se torna cenário de uma eletrizante história de terror, com a chegada do povo alien Meduse, inimigos mortais dos Koush.

Binti é uma adolescente muito decidida, mas também frágil na incerteza do que o futuro lhe reserva longe de casa, na universidade, e em seu contato com o povo Meduse. Contato esse que fica mais complexo e tenso à medida que o tempo vai passando na nave, e que vai transformar a vida de Binti para sempre.

Em Binti: Home, segunda novela da trilogia, ela já frequenta a universidade de Umza Ooni. Depois do trauma vivenciado no livro anterior, Binti volta para Terra, a fim de se explicar à sua família por ter fugido. Esse retorno não é fácil. Binti não é mais a mesma pessoa, algo que tanto seus familiares como a própria Binti têm dificuldade em entender.

A expansão desse universo é o maior mérito do segundo volume. Conhecemos mais o povo Himba e a família de Binti, com seus afetos e conflitos. Agora Binti enfrentará mais uma etapa decisiva em seu caminho de autodescoberta, após revelações sobre seus ancestrais e poderes que ela desconhecia. Ao mesmo tempo, há um grande perigo no ar. A rivalidade entre os Meduse e os Koush chega à Terra, ao povo Himba e coloca a vida de Binti em risco.

Na terceira novela, The Night Masquerade, temos uma conclusão épica à jornada de Binti, colocando-a no epicentro de uma guerra iminente entre Meduse e Koush, após anos de trégua. Binti precisa buscar a paz a fim de preservar sua cultura e a vida de seu povo. Além de tentar entender as habilidades que carrega consigo.

A primeira novela é tão empolgante que você consegue terminá-la de um só fôlego. O texto de Okorafor é simples, fluido, muito gostoso de ler. É uma prosa cheia de sabedoria, calorosa, mas que não deixa de lado o aspecto sombrio da natureza humana… e de alienígenas. Isso continua em Binti: Home, mas aqui algo fica faltando, um maior investimento na trama. Não acontece muita coisa, mesmo com um elenco de personagens fascinantes.

Contudo, em The Night Masquerade, Okorafor consegue aproveitar muito bem o fato de escrever a novela mais extensa para, finalmente, entregar ao leitor o cenário completo de toda a saga. É no terceiro livro que temos os melhores momentos de Binti, tanto na interação com os demais personagens, como em suas reflexões sobre seu lugar no mundo (e no universo) e outros temas caros, como os papéis da mulher, sede de conhecimento, estado de guerra, tradição, modernidade e negritude. Himba, Meduse e Koush não são retratados como mocinhos e vilões, mas como gente e seres complexos numa situação-limite, que precisam fazer escolhas difíceis, vencer barreiras e preconceitos. O desfecho é positivo, mas longe de ser ingênuo.

Com a trilogia Binti, Nnedi Okorafor subverte as convenções da ficção científica para tornar o gênero mais vibrante. Ela continua os passos de Octavia Butler e apresenta uma obra de afrofuturismo notável. A primeira novela ganhou o Nebula e o Hugo.

 

Binti, 98 págs, Tor. AVALIAÇÃO: RUIM, REGULAR, BOM, MUITO BOM, EXCELENTE

Binti: Home, 168 págs., Tor. AVALIAÇÃO: RUIM, REGULAR, BOM, MUITO BOM, EXCELENTE

Binti: The Night Masquerade, 202 págs., Tor. AVALIAÇÃO: RUIM, REGULAR, BOM, MUITO BOM, EXCELENTE

QUEM TEM MEDO DO FEMINISMO NEGRO?

feminismo

Djamila Ribeiro é um dos nomes mais importantes do pensamento social contemporâneo brasileiro, justamente por fazer, com tanta propriedade, a ponte entre a teoria acadêmica e a população em geral.

Por meio de seus artigos e livros, e como editora e palestrante, ela torna acessível uma pauta urgente: a condição da mulher negra no Brasil. Djamila mostra que a mulher negra, tão massacrada historicamente, sofre em dobro por ser mulher e negra, tendo que enfrentar o racismo, o machismo, o fogo amigo do feminismo da mulher branca, a invisibilidade e outros estereótipos desde a infância.

Este Quem tem medo do feminismo negro? é ótimo, principalmente, para quem ainda não parou para refletir sobre o tema. Para quem já tem outras leituras a respeito, serve como síntese de muitas fontes espalhadas por aí. Além de trazer uma rica bibliografia para que o processo de reflexão continue, mais aprofundado. É um aprendizado realmente.

Quem tem medo do feminismo negro?, de Djamila Ribeiro, 120 págs., Cia das Letras.

AVALIAÇÃO: RUIM, REGULAR, BOM, MUITO BOM, EXCELENTE