BATMAN VS SUPERMAN: O SONHO ACABOU?

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A Warner/DC toma uma posição arriscada por dar tanto peso, tanta seriedade, a filmes que deveriam ser apenas diversão? Eles tentam uma abordagem alternativa à Disney/Marvel. O público precisa disso. E a própria Warner não tem muita escolha, ela deve se diferenciar da concorrência, criar um estilo próprio. Isso deu bastante certo com a trilogia do Batman de Nolan.

Batman vs Superman era a promessa do estúdio de começar de fato o universo cinematográfico da DC. Homem de Aço praticamente não conta, servindo como um tipo de prólogo. A expectativa para o embate entre os dois maiores ícones da DC era grande por parte dos fãs e da indústria. Um sonho nerd finalmente seria realizado, com todo o dinheiro e talento que Hollywood podia dispor. Assim como o novo filme de Star Wars, Batman vs Superman não podia falhar, não podia frustrar tanta gente.

A Warner é conhecida por acreditar na visão dos diretores com quem trabalha. O caso mais recente de sucesso dessa parceria foi o apoio a George Miller em seu Mad Max – Estrada da Fúria. Um projeto caro e problemático, mas que, no final, resultou no filme de ação mais incrível dos últimos anos, uma bilheteria decente e 6 Oscars.

Batman vs Superman também foi um projeto problemático. Porém isso se reflete no que assistimos na tela. A edição tem um ritmo irregular, com transições abruptas e mudanças de contextos irritantes, jogando o espectador num redemoinho de situações sem o devido desenvolvimento. Além de momentos arrastados, como no Planeta Diário e depois do clímax. A sequência no deserto é belíssima. Mas por que ela está no filme? É bizarro ver como o roteiro de um filme tão importante pode ser tão preguiçoso. O exemplo mais evidente é a preparação para a luta entre o Vigilante e o Alienígena. As motivações de Batman são sólidas na visão de mundo dele, mesmo que numa perspectiva distorcida e raivosa. Mas as motivações do Superman são tão tênues que não justificam a briga. Mas ela acontece. E termina da maneira mais patética possível, por causa de um detalhe sentimental que muda tudo, avançando o filme para o terceiro ato às pressas. Devemos lembrar a participação fundamental de Lex Luthor nos bastidores da treta. Seria tão fácil assim Luthor e o Superman manipularem Batman, o estrategista nato?  Não vou falar dos furos do roteiro. Até grandes filmes de super-heróis, como O Cavaleiro das Trevas, têm problemas de continuidade, coincidências que não fazem sentido.

Os efeitos especiais são muito competentes, descontando os excessos, em cenas com o batmóvel e, claro, o Apocalipse genérico. Deviam ter chamado Guillermo del Toro apenas para criar o monstro. A trilha sonora mistura uma repetição do que já ouvimos em Homem de Aço com novos temas, sendo o mais marcante o da Mulher Maravilha.

O Batman/Bruce Wayne de Ben Afleck é a melhor coisa do filme, tanto o visual como a personalidade. Melhor Batman do cinema! Raivoso, focado e brutal, até demais, num estilo Justiceiro, matando criminosos sem piedade. A Mulher Maravilha de Gal Gadot marca presença. É o único fan service que funciona. Ela traz mais força e graça ao filme. Mas do ponto de vista narrativo, sua presença é injustificável. O Superman de Henry Cavill continua uma decepção. O melhor Superman dos quadrinhos é uma inspiração moral. A Marvel conseguiu muito bem transformar o Capitão América num personagem relevante no cinema, uma referência. A mesma coisa devia ser feita na Warner/DC. Acho Frank Miller incrível, apesar do fascismo do cara. Não gosto do Superman dele, como um instrumento político do governo americano. No filme, fizeram pior, transformando o personagem num instrumento de destruição que não sabe se conter. O Lex Luthor de Jesse Eisenberg tinha a oportunidade de fazer algo diferente, inédito. Aqui caberia bem uma versão mais sombria e controlada. Luthor começa bem, passando algum medo em sua loucura megalomaníaca, mas isso dura pouco. Depois acompanhamos uma variação cartunesca de filmes anteriores. À exceção da senadora de Holly Hunter e o Alfred de Jeremy Irons, o elenco de apoio não contribuiu para o envolvimento emocional do espectador.

A Warner tem um pepino para descascar e se chama Zack Snyder. Ele não é o pior diretor do mundo. Mas agora ficou bem claro que ele não é a pessoa certa para ter um papel tão central na criação do universo cinematográfico da DC. Ele está escalado para comandar A Liga da Justiça 1 e 2. Diante de tamanha responsabilidade, ele não mostrou a evolução necessária para estar à frente de um projeto tão ambicioso. Joss Whedon mostrou evolução como diretor no primeiro Vingadores, os irmãos Russo em Capitão América – Soldado Invernal e George Miller, em Estrada da Fúria, dispensa comentários. Em termos de coesão e ritmo, Batman vs Superman é inferior a outros filmes de Snyder. Ele sentiu o peso da camisa. E já tinha mostrado isso em Homem de Aço. A Warner apostou nele e perdeu. Mas a Warner tem sua parcela de culpa. Ela atropelou as coisas, por estar muito atrasada e preocupada em estabelecer a base de personagens do novo universo. Os executivos do estúdio pensam que não há mais tempo para sutilezas, esperar que os filmes solo dos outros heróis fiquem prontos e estreiem.

Batman vs Superman é um filme com alguns bons momentos, que empolgam e comovem. As surpresas são pouquíssimas, graças ao marketing desesperado, que mostrou praticamente tudo antes da estreia. Eu não fiquei irritado, como ao assistir Vingadores – Era de Ultron, e sim decepcionado por ter tido um sonho que não consigo lembrar quase nada.

Batman vs Superman – A Origem da Justiça (Batman v Superman – Dawn of Justice, 2016), de Zack Snyder, 151 min. DC Entertainment e outros

AVALIAÇÃO: RUIM, REGULAR, BOM, MUITO BOM, EXCELENTE

DEMOLIDOR 2ª TEMPORADA: MAIOR, MELHOR E AINDA COM PROBLEMAS

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(Esta resenha contém spoilers.)

A 2ª temporada do Demolidor é superior à 1ª, mas continua com sérios problemas de roteiro. A produção ficou maior, as cenas de luta evoluíram (há pelo menos dois momentos memoráveis: o Demolidor descendo as escadas na porrada; e o Justiceiro enfrentando os criminosos na prisão) e os personagens, antigos e novos, têm o devido espaço para desenvolver seus arcos. As participações de Foggy e Karen estão mais interessantes, mais cheias de conflitos. O Demolidor/Matt Murdock está mais ambíguo. Suas convicções não permitem que mate criminosos, mas ele não pensa duas vezes antes de machucar emocionalmente pessoas queridas.

A grande expectativa dessa temporada eram as participações de Elektra e do Justiceiro. Com certeza, muitos fãs dos quadrinhos vão se decepcionar. Na série, vemos as duas máquinas de matar de um jeito mais humano; além da conta. Anti-heróis feitos para o gosto de um público maior. Os produtores da série devem achar que as melhores versões de Elektra e do Justiceiro dos quadrinhos são muito sisudas e empregam uma violência difícil de justificar, pela falta de uma motivação mais aceitável, mais previsível. Assim como a 1ª temporada serviu como história de formação do Demolidor, o mesmo acontece com Elektra Natchios e  Frank Castle.

Independente de ser fã de quadrinhos, o roteiro da série deixou a desejar, principalmente, por dois motivos: 1) há bons embates com menos ação e mais diálogos, mas outros falatórios são bem sofríveis, piegas mesmo, de dar sono. E 2) as soluções das duas subtramas principais: os planos do Tentáculo e a morte da família do Justiceiro. Os produtores ainda não sabem terminar uma temporada, insistindo em reviravoltas previsíveis e criando expectativas que são miseravelmente satisfeitas. A discussão do bandido bom é bandido morto perde força, fica pelo caminho.

Assim como na 1ª temporada, os episódios mais empolgantes foram os intermediários. Achei o final brochante. Mas com uma esperança. Mais do que um Justiceiro insano, pode vir aí uma Elektra do mal, como membro do Tentáculo. Wilson Fisk faz uma participação de luxo e decisiva, mostrando que ele não pode ser subestimado. Além de jogar no ar um cheiro de A Queda de Murdock para a próxima temporada. Outra coisa interessante são as conexões mais estreitas com os universos dos outros heróis que formarão Os Defensores.

Demolidor 2ª temporada (Daredevil season 2, 2016), 13 episódios, Marvel Television, ABC Studios

AVALIAÇÃO: RUIM, REGULAR, BOM, MUITO BOM, EXCELENTE.

FALTA MATURIDADE

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O problema não é o número de páginas. Livros curtos podem se revelar uma leitura intensa, carregada de emoções e sabedoria. Raphael Montes sabe escrever, isso é inegável. Cheguei ao final do livro porque o texto se mostrou ritmado e elegante. Mas em O Vilarejo falta algo essencial: pegada. Qualidade que um autor consegue transmitir em um texto depois de muita leitura, muitos anos escrevendo e muita experiência pessoal. Claro que há autores jovens que já mostram bastante maturidade técnica, temática, filosófica. São desses mistérios da vida. Infelizmente, não é o caso de Montes. Com certeza, a técnica ele já domina. A ideia do livro é boa, com contos de terror formando um todo. A coesão é interessante. Os detalhes foram bem pensados. Mas o autor fica devendo em outro fator importantíssimo: o subtexto, a entrelinha, a motivação do seu livro existir. As ações, pensamentos e falas dos personagens refletem o lugar comum da gente pecadora que merece ser punida. A vida não é assim. O mal puro. A impunidade é mais assustadora do que a punição. A intenção do autor é válida. Refletir sobre o tema da maldade, a partir da atrocidade que cada personagem comete. O problema é que não há sutilezas. Eu gosto do gore. Mas neste contexto, mostrou-se excessivo. Além da conta. O horror acaba ficando tão pálido quanto os personagens desinteressantes. As páginas finais mostram alguma força e o desfecho é engenhoso, mas já é tarde para o leitor se empolgar.

O Vilarejo, de Raphael Montes, 96 págs., Suma de Letras

AVALIAÇÃO: RUIM, REGULAR, BOM, MUITO BOM , EXCELENTE

ESTRANHA BAHIA EM CORES

Estranha BAHIA é uma antologia de contos de terror, fantasia e ficção científica, na qual participo como organizador e autor. Entregamos aos autores e apoiadores de nossa campanha no Kickante as versões em e-book e PDF, na 1ª etapa das recompensas. Rochett Tavares foi o responsável pelo projeto gráfico. Esta é uma amostra do PDF colorido:

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UM BRAZIL FANTÁSTICO

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(O autor gentilmente enviou os cinco e-books em troca de uma resenha honesta.)

Não é só com romances de fantasia épica de quinhentas, oitocentas, mil páginas que se faz um gênero. Textos mais curtos, como contos e noveletas, estão ganhando novo fôlego com as facilidades do e-book, tanto para quem produz quanto para quem consome literatura.

As noveletas de fantasia heroica do americano Christopher Kastensmidt, radicado em Porto Alegre, mostram que nem sempre o romance é o melhor formato para desenvolver uma história, um universo literário. O mundo da série The Elephant and Macaw Banner (A Bandeira do Elefante e da Arara) é um Brasil fantástico do século XVI, onde as lendas e mitologias formadoras do país ganham vida. Saci Pererê, Boitatá, Curumim, Iara, Labatut, Capelobo e outros.

Até agora foram publicadas cinco aventuras da dupla Gerard van Oost e Oludara. O primeiro um holandês que veio ao Brasil em busca de fortuna. O segundo um africano do Ketu (atual Benin), trazido à força como escravo. Ambos selam um pacto de amizade que é o fio condutor da série. É uma amizade improvável, mesmo numa versão fantástica de nossa História. O período colonial foi um dos mais brutais, com pouquíssimo espaço para sutilezas e compreensões de outras culturas. A violência era a lei e o convívio entre europeus, africanos e indígenas era conturbado.

Mas, no Brasil criado por Kastensmidt, há gente de muito caráter, a começar pela dupla protagonista. Aqui a gentileza tem uma importância fundamental. É uma mentalidade contemporânea num cenário histórico. Claro que coisas terríveis acontecem, os preconceitos são evidenciados.  Porém, por meio da sabedoria de certos personagens, brancos, negros e indígenas, é feita a crítica de comportamentos do passado; e que continuam até hoje. A linha entre o subtexto e o didatismo pode ser tênue. Kastensmidt acerta mais do que derrapa.

E estas noveletas são divertidas, afinal? Sim. São textos fluidos, cheios de ação, com boas doses de humor. O autor mostra o esforço de suas pesquisas sobre as culturas e lugares do período com descrições ricas e dinâmicas, geralmente fugindo dos clichês, sem nunca atrapalhar o ritmo da narrativa e o desenrolar da trama. São histórias curtas, em que nenhuma página pode ser desperdiçada. Há um competente desenvolvimento de personagens, principais, secundários e terciários, inclusive os vilões, com motivações convincentes e personalidades tridimensionais. A estrutura do texto tem montagem cinematográfica com cortes que avançam a trama e perspectivas paralelas. Outro acerto é praticamente concentrar os pontos de vista em Gerard e Oludara, o que dá mais foco e densidade ao que é mostrado.

As noveletas podem ser lidas em qualquer ordem. Possuem tramas fechadas, que não deixam o leitor perdido no meio desse universo. Mas recomendo que as aventuras sejam lidas conforme a ordem de publicação. É a melhor maneira de perceber a evolução desse mundo, das trajetórias dos protagonistas e da escrita do autor.

As edições em e-books são simples, mas muito caprichadas. A começar pelas capas belíssimas, com ilustrações que fazem referência ao tema de cada aventura, finalizadas com uma titulação marcante.

Algumas dessas noveletas já foram publicadas aqui no Brasil pela Devir, em formato de bolso. O leitor brasileiro, juvenil ou adulto, merece conhecer essa inteligente e divertida visão estrangeira de nosso país.

Série The Elephant and Macaw Banner, de Christopher Kastensmidt, independente.

AVALIAÇÕES:

The Fortuitous Meeting (Book 1), 39 págs.                 BOM

A Parlous Battle (Book 2), 38págs.                                BOM

The Discommodious Wedding (Book 3), 42 págs.    MUITO BOM

An Inauspicious Visit (Book 4), 48 págs.                     MUITO BOM

A Preposterous Plight (Book 5), 37 págs.                     BOM

 

NOVELETA “RAÇAS”: LEIAM UM TRECHO

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Inspirada em autores como Philip K. Dick, Isaac Asimov e John Scalzi, a noveleta Raças, integrante da antologia Estranha Bahia, mistura ficção científica e trama policial. Numa Salvador do futuro, humanos convivem abertamente com uma raça alienígena. Um policial humano, que faz bicos como investigador particular, é contratado para descobrir quem matou um criminoso alien. Diferenças culturais, preconceito, corrupção. Ninguém é inocente, até que se prove o contrário. Leiam um trecho:

1

Início da gravação 8-B, 23 de outubro de 20… 01:19 AM

Fiquei de me encontrar com Lupo na Avenida Sete, na Praça da Piedade. Era um dia quente dos infernos, doutora. Eu rezava pro infeliz não se atrasar demais. Eu corria contra o relógio.

Gosto de ser pontual em meus compromissos. O pessoal do DP diz que essa é mais uma das minhas esquisitices. Falam coisas sobre mim, na minha cara. Mas as ofensas de verdade só pelas minhas costas. Fico sabendo de algo, mais cedo ou mais tarde. Carlão é o único que fala o que realmente pensa, olhando no meu olho. Ele me odeia. Qualquer dia desses, ele pode armar uma pro meu lado. Talvez até armar uma treta fortíssima e me dar um tiro na nuca… Que porra fiz ao cara? Não faço ideia, sério…

Bateu a sede.

Fui até um carrinho de água de coco, perto do gradil que cerca a praça.

“O que vai ser, chefe?”, disse o vendedor. Um sujeito franzino com uma expressão esperta, mas cauteloso.

“Um copinho bem gelado.”

Ele tinha sacado que eu era polícia?

Eu não usava óculos escuros. Vestia uma camisa de flanela folgada e calça jeans. Minha arma estava escondida na cintura.

Não costumo passar pela região a pé.

O vendedor me entregou um copo plástico gelado.

Uma garota de traços orientais, talvez coreana, talvez chinesa, passou por mim, me encarou. Parecia uma bonequinha de marmanjo. Daquelas, doutora, que os caras pagam não sei quantas prestações para adquirir as esposas mais obedientes e taradas do mercado.

Seus olhos eram púrpuros.

Ela não usava lentes de contato… Ou seria mais um daqueles idiotas que imitam os eladianos, usando lentes púrpuras?

Eu ainda não tinha bebido uma gota da minha água de coco.

Virei o copo de vez.

Amassei o copo e o joguei no cesto de lixo acoplado no carrinho.

Uma senhora se aproximou.

“Eu quero uma garrafinha.”

O vendedor a atendeu.

Tirei meu smarty do bolso da calça. Conferi as horas pela segunda vez desde que tinha chegado.

Lupo estava atrasado nove minutos.

Eu me sentia um alvo fácil. De pé, em silêncio, apenas observando. Enquanto a maioria das pessoas se movimentava pra lá e pra cá, na lerdeza ou às pressas. Até quem estava parado fazia algo útil, como vender suas mercadorias ou jogar conversa fora.

Chequei minhas mensagens. Nenhuma era de Lupo. Aquele filho da puta. Desculpe, doutora… Ele sabia que estava me devendo. Ele não era maluco de furar comigo.

O vendedor atendeu um casal de estudantes.

Reparei que o garoto e a garota usavam aqueles aparelhos em forma de pulseira, em que a tela é projetada no braço da pessoa, um holograma. Sumaya, minha filha, já quis me dar um desses. Eu disse não, obrigado. Seria pedir demais da minha rabugice.

Então meu smarty vibrou.

Era uma mensagem de Lupo: taxi corolla vidro preto.

Coloquei o smarty de volta no bolso, saquei minha carteira e paguei o vendedor.

“Fique com o troco”, eu disse, meio apressado.

“Valeu, chefe.”

O vendedor não pareceu surpreso com meu gesto.

Se ele soubesse que eu era polícia, não esperaria pagamento nenhum. A água de coco seria uma cortesia forçada.

Fui pra ponta do passeio. Tentei avistar o tal táxi.

Foi naquele ponto da praça que combinamos de nos encontrar.

O trânsito estava pesado, lento, mas não a ponto de travar tudo.

Era por volta das dez da manhã.

Passei a mão na testa pra limpar o suor em excesso.

Estava atento à movimentação dos carros. Então percebi quando um Corolla, todo laranja, com listras laterais em vermelho e azul, saiu da faixa do meio, ágio, indo pra faixa da direita. Acompanhou o fluxo mais livre, parou, seguiu devagar, depois acelerou o que pôde, ganhando terreno em segundos. Até parar quase ao meu lado, só um pouco mais na frente.

Os vidros eram completamente escuros, inclusive o para-brisa.

Dei alguns passos pra ficar lado a lado com o táxi.

A calçada tinha um passeio alto.

Não dava pra ver ninguém dentro do táxi.

Senti um friozinho na barriga. Paranoia de policial.

O vidro do carona desceu. Não reconheci o homem que apareceu na janela. Mas, no momento seguinte, fiquei mais tranquilo ao perceber que Lupo estava ao volante.

Ele também me encarou, avançando a cabeça, fazendo um esforço pra ser visto por mim.

“Entra aí, doido”, ele disse, em sua voz gasta de fumante.

Desci na pista e abri a porta traseira. Entrei no táxi.

Senti o friozinho do ar-condicionado.

E a pressão da minha arma nas costas contra o banco.

O rádio estava sintonizado numa emissora qualquer, o locutor falando sobre as notícias do dia.

“Não vai estourar comigo, vai?”, Lupo disse, olhando pra mim pelo retrovisor interno. Depois olhou pro seu retrovisor, aguardando uma brecha no trânsito pra ir embora.

“Relaxe, cara. Você tá me fazendo um favor, não tá?”

Nossos olhares se encontraram no retrovisor interno. Parecia que tudo estava resolvido entre a gente.

“Esse aqui é meu irmão”, Lupo disse, checando mais uma vez o trânsito pelo seu retrovisor.

O tal irmão virou a cabeça.

“E aí?”, ele disse.

“Tudo certo”, respondi.

Lupo arrancou com o táxi.

“Detetive, você sabe que seu smarty foi provisoriamente desativado.”

O tom de Lupo era de pura ironia.

Paguei a ironia com um sorriso de canto de boca.

Era o lance da possibilidade de rastreamento, doutora.

Sim, eu sabia que o táxi tinha algum dispositivo que bloqueava o sinal de qualquer smarty. Na verdade, de qualquer aparelho invasor. Mesmo desligado, meu smarty não podia ser rastreado.

Provavelmente, o rádio funcionando era a chave do mistério.

Mexi o corpo, fui sentar bem no meio do banco. Assim eu teria uma melhor visão dos meus companheiros de viagem.

“Depois dessa, você vai ficar um bom tempo sem me pedir um favor, detetive.”

Lupo tentava dar atenção ao trânsito e, pelo retrovisor interno, a mim.

“Fique tranquilo. Sei muito bem qual é o preço do meu favor.”

“Cara, isso envolve os transparentes, os turistas, vocês da cana. É muita coisa numa confusão só.”

Lupo conseguiu espaço pra entrar na faixa da esquerda.

O barulho e a luminosidade da rua praticamente ficaram do lado de fora. Estávamos quase em outro mundo. Uma bolha de conforto e segurança.

O táxi era o escritório de Lupo. Na verdade, ele tem dois ou três carros adaptados como aquele. Que eu saiba. Um bem diferente do outro.

“Eu quero ouvir a história. Só isso.”

O irmão de Lupo se mexeu no assento. Senti que estava nervoso.

Ele era mais jovem. Não tinha a mesma fisionomia de Lupo. Provavelmente eram meios-irmãos. Filhos de algum bicho solto no mundo.

Três caras negros dentro de um carro. Motivo suficiente para qualquer blitz da PM mandar encostar. Mesmo sendo um táxi.

Só não era pior do que três eladianos dentro de um carro.

Lupo parou na entrada de uma ruela. Esperou alguns pedestres passarem. Então se enfiou naquele lugar estreito, meio em declive. Fomos dar na Avenida Carlos Gomes.

Na minha opinião, doutora, o Centro de Salvador é um museu bizarro a céu aberto. Mistura de decadência com uma modernidade de plástico, de péssimo gosto.

Avançamos na avenida sem qualquer problema. Naquele instante, naquela faixa, o trânsito estava livre. Até nos misturarmos ao resto dos carros, ônibus e motos que vinham na retaguarda.

“O que vocês têm pra mim?”

O irmão de Lupo olhou pra ele. Lupo fingia só estar interessado no trânsito.

“Conta”, Lupo soltou, finalmente.

O irmão pigarreou.

Enquanto contava a história, ora ele se virava pra trás, na minha direção, ora voltava pra encarar o para-brisa escuro.

A programação do rádio, um misto de músicas, notícias e propagandas, não aborrecia, não atrapalhava.

“Cara, isso eu ouvi de um cliente meu, ontem. Ele mora num condomínio de mansões no Caminho das Árvores.”

“Qual o nome do seu cliente?”

“Pra que dizer o nome do cara? Você vai mexer com ele?”

O irmão me encarou com uma expressão de poucos amigos.

“Deixa pra lá.”

“Como eu tava dizendo… esse meu cliente viu uma movimentação estranha no condomínio, durante a madrugada da segunda-feira. Por coincidência, ele não tava chapado naquela noite. Tava bêbado, mas deu pra ver o que acontecia do lado de fora. Parece que mais ninguém notou o que tava rolando.”

“Ou alguém mais também viu e não quer abrir a boca.”

“Não interessa. Você quer ouvir a história, certo?”

O irmão me encarou.

“Prossiga.”

Fechei a cara. Aquela figura começava a me irritar, doutora.

A expressão de Lupo estava tensa. Ele tentava, ao mesmo tempo, ser um ouvinte e um motorista atento.

Ele entrou no Largo dos Aflitos. Iríamos pra Cidade Baixa, pensei na hora. Eu queria saber que zorra íamos fazer por lá. Mas deixei o assunto quieto.

“Meu cliente tava com uma prima. Ele é engenheiro. Na hora, ele não tava chapado. Senão não dava pra comer a menina direito.”

“Não enrola.”

Lupo encarou o irmão, esquecendo por dois segundos a ladeira íngreme que descíamos.

Também por dois segundos fiquei apreensivo, com medo de acontecer um acidente.

Os dois idiotas travaram uma rápida batalha de nervos, um encarando o outro.

“Tá bom”, disse o irmão, aborrecido.

Lupo voltou a prestar atenção à ladeira.

O irmão continuou:

“Teve uma hora que meu cliente foi até a parede envidraça da sala da mansão, que fica no primeiro andar. A parede dá pra rua de acesso do condomínio. As cortinas tavam abertas, mas a casa tava às escuras. Ele tava bêbado, pensando não sei o que da vida, talvez como ele era um merda, privilegiado, mas um merda, quando ouviu um som medonho e agudo… ele me disse exatamente isso: medonho e agudo… Algo que ele nunca tinha ouvido antes…”

Lupo alcançou a Avenida Contorno. Mesmo interessado na história, eu tive que virar a cabeça e dar uma checada no mar brilhando lá embaixo, a perder de vista. Nunca me canso de apreciar aquele marzão.

“Ele não soube sacar de onde exatamente tinha surgido o grito. Olhou pra um lado e pro outro pela vizinhança, mas nada. A rua de acesso do condomínio tava deserta. Apenas três ou quatro casas tavam com as luzes acesas, mas não dava pra ver ninguém. Nenhuma casa ali tem muro na frente…

“Ele poderia ter voltado correndo pro quarto pra junto da prima, mas a curiosidade foi mais forte. Quase acendeu um cigarro, mas acabou se tocando que seria puro vacilo. Ele não tinha muita noção do tempo, afinal tava bêbado. Ele não sabia direito quanto tempo levou até perceber uma movimentação três casas à sua esquerda, do outro lado da rua…

“A casa tinha um largo portão na garagem. O portão se levantou. Lá dentro, uma Mercedes com os vidros completamente escuros deu a partida, acendeu os faróis e saiu, meio às pressas… Não deu pra ver quem era o motorista, ou se tinha mais alguém junto… Ele percebeu que as luzes da casa continuaram acesas. Achou até que viu uma movimentação lá dentro… Ele esperou, esperou, esperou pra ver se acontecia mais alguma coisa… Aí meu cliente perdeu o interesse e voltou pro quarto pra continuar bebendo e trepar…”

“Esse seu cliente viu a Mercedes de novo?”, perguntei.

“Não, nunca mais.”

“Placa do carro?”

“Tá viajando, cara.”

“Mas seu cliente sabe quem é o dono da casa.”

O irmão deu um sorrisinho.

“Um tal de Bruno Villa Corrêa, um advogado.”