MELHORES CONTOS BRASIL EM PROSA

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Depois de ler mais de 30 contos participantes do concurso Brasil em Prosa, selecionei estes oito como os melhores até o momento.

Hímen, de Gabriel Réquiem: conto instigante sobre uma sociedade onde a intolerância religiosa foi institucionalizada, virou lei. E a mais improvável das mães vai gerar uma esperança. Para quem conhece o autor do conto O senhor do vento, sabe que vai encontrar um texto de qualidade, mesmo que sua brevidade tenha comprometido um pouco o desenvolvimento. A capa causa impacto. Mas a edição ficou devendo informações básicas.

Até os lobos uivam quando estão sozinhos, de Tiago Germano: conto bem escrito e cativante. O autor soube retratar a relação de afeto entre dono e cão. Um história realista contada de maneira simples, dando espaço para o leitor se dedicar aos personagens. A capa poderia ser um pouco mais inspirada. Mas a edição está bem feita, quase completa.

Invisível, de André Iki Siqueira: conto bacana sobre um personagem que é considerado louco, mas que se mostra mais lúcido do que a maioria. O texto é gostoso de acompanhar, fazendo com que o leitor tenha simpatia pelo protagonista, em sua labuta como o escritor de todas as verdades do universo. A capa é a mais bonita entre os oito contos. Mas vacila na edição, sem informação nenhuma.

O estranho, de Karen Alvares: a autora já tem dois romances e vários contos publicados. O estranho é um conto cheio de mistério e tensão. É um texto no qual o silêncio e as entrelinhas são tão importantes quanto o que está escrito. A bela capa mostra bem as incertezas do protagonista com o mundo e principalmente com ele mesmo. A edição é impecável.

Entre duas gotas de chuva, de Viviane Maurey: conto que envolve a relação entre mãe e filha com o uso da imaginação. Funciona. A autora soube conduzir bem as motivações da brincadeira entre as duas e os dramas que determinam que toda brincadeira tem limite. A capa é bacana, a edição idem, mas senti falta de um breve perfil da autora.

Amores Perfeitos, de T. Pelosi: o autor nos engana direitinho. Ao conhecermos o drama da protagonista, pensamos que se trata de uma coisa, mas na verdade é outra. Então ficamos encantados com a relação de Anabela com os outros personagens, tão importantes para ela. A capa é boa, eficiente. A edição é básica, sem todas as informações.

O ouro da montanha, de Camila M. Guerra: um conto curioso por, literalmente, dar vida a elementos da natureza. A autora conseguiu transformar tais elementos em personagens convincentes. Também vale destacar a bela capa. Pena que faltou um maior cuidado com a edição, sem informações básicas.

Não pode chover o tempo todo, de Alec Silva: o narrador desse delicado conto é um jovem maduro demais para sua idade, já tão consciente das agruras da vida. Mas ele encontra alento no amor por uma garota. E faz desse amor a coisa mais importante. Este conto pode ser classificado como new adult, gênero tão em voga atualmente. É um texto honesto. O autor já tem vários contos, novelas e romances publicados. A capa é simples, mas consegue ser marcante pelo contraste de cores. A edição está bem cuidada.

VIAGEM NOTURNA

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Minha intenção foi bater perna por aí, ir adiante quase sem rumo, não planejar muito as coisas. Viajei sozinho para ver e ouvir melhor. Foram duas semanas de andanças pelo interior da Bahia, entre setembro e outubro de 2007. Uma temporada em que esqueci um pouco quem eu sou e me rendi à vivência de outros.

O livro de viagens “Homem com Mochila” foi publicado em 2008. O texto abaixo é um dos capítulos do livro.

VIAGEM NOTURNA

Quando se está num ônibus, à noite, tendo pela frente uma viagem de três horas e meia, quatro horas, podemos fazer poucas coisas, como conversar com o vizinho de poltrona, ouvir música, dormir, comer ou pensar na vida. Já que não havia ninguém ao meu lado, eu não tinha um mp3, estava sem sono e sem fome, só me restou pensar na vida. Mais especificamente no ato de viajar.

No filme O Céu Que Nos Protege, de Bernardo Bertolucci, baseado no romance homônimo do norte-americano Paul Bowles, um casal de ricos nova-iorquinos (Kit e Port) vai ao norte da África do pós-Segunda Guerra em busca de uma aventura existencial. Eles levam a tiracolo um amigo, Tunner. Logo ao chegarem, ocorre o seguinte diálogo:

Tunner: “Nós provavelmente somos os primeiros turistas deles depois da guerra.”

Kit: “Tunner, não somos turistas. Somos viajantes.”

Tunner: “Qual é a diferença?”

Port: “Um turista pensa em ir para casa assim que chega em algum lugar.”

Kit: “Enquanto que um viajante pode nunca voltar para casa.”

Tunner: “Você quer dizer que sou um turista.”

Kit: “Sim, Tunner. E eu sou meio a meio.”

Acredito que Kit e Port estejam certos. Ao passar férias numa praia do Nordeste, por exemplo, apenas flanando, tomando água de coco, cerveja e banho de mar, comendo deliciosas moquecas e peixe frito, lendo na rede e fazendo sexo durante à tarde, queremos mais é recarregar nossas baterias, para suportar novamente o cotidiano. Ou mesmo para voltar a amá-lo. Ao sair de férias, varremos nosso dia-a-dia para debaixo do tapete. Mas sabemos que ele estará lá, nos esperando quando chegarmos em casa.

Para o escritor inglês Alain de Botton, a arte de viajar, como ele chama, nada mais é do que a possibilidade mais concreta de buscar a felicidade, algo que supere, nem que seja por um dia, todos os valores do mundo dos negócios, das cobranças e dos compromissos.

Então, é de espantar como muitas pessoas burocratizam suas viagens, tornando-as tão parecidas com a vida cotidiana. Elas embarcam em excursões cheias de regras, regulamentos e horários a cumprir.

A experiência do viajante é outra, é mais radical – e não falo de trilheiros e montanhistas, que também retornam à civilização no fim de suas aventuras. Porque o viajante torna sua vida uma grande jornada, um desafio inexorável. Para ele, não é suficiente aproveitar uma praia do Nordeste como hóspede de uma pousada ou resort. Ele quer vivenciar, o mais próximo possível, a experiência de ser um local, um habitante do lugar. Passar meses ou talvez anos construindo um novo cotidiano. Mas ele não para, porque há muito o quê conhecer. Ele se considera um nômade. Um colecionador de cotidianos. Possivelmente, o viajante é o último dos românticos.

O caso do escritor inglês Bruce Chatwin demonstra bem isso. Nascido em 1940, de uma família próspera, desde garoto Chatwin sonhou em ser um viajante, como os personagens das histórias de Jack London e Herman Melville, que tanto adorava. Em férias, ele viajava muito com os pais e os irmãos, para a Espanha, Grécia, País de Gales, Suécia, Itália, Oriente Médio e outros países.

Aluno não muito brilhante, seus professores o consideravam um sonhador acordado. Para fugir da rigidez da criação familiar, decide, aos 19 anos, arranjar um emprego na Sotheby´s, a famosa casa de leilões inglesa. Chatwin entendia de antiguidades, uma de suas paixões. Aos 26 anos, largou o emprego e passou um tempo na universidade de Edimburgo (Escócia) estudando Arqueologia, e se mantendo com a venda de peças de sua coleção particular de antiguidades. Realizou trabalhos de campo no Afeganistão e na África.

Em 1973, sem dinheiro, Chatwin aceitou o convite de uma revista inglesa para escrever sobre arte e arquitetura. Era outra oportunidade de viajar pelo mundo. Numa viagem à Patagônia (região entre o Chile e a Argentina), ele ligou para seu editor se demitindo. Passou seis meses por lá. A experiência resultou no relato de viagem Na Patagônia, um best-seller internacional. A partir de então, Chatwin escreveu muitos livros de viagem, romances, artigos e ensaios, consagrando-se como um festejado escritor-nômade.

Nunca parou de viajar. Morou em vários lugares no mundo. Chatwin acreditava que o homem é nômade por natureza, que o movimento é algo muito importante, que a rotina atrofia a percepção. Para os amigos, ele era um grande-papo e um companheiro. Para os detratores, um egocêntrico e mitômano. Chatwin morreu em 1989, na França.

Eu me sinto nessa viagem como a socialite Kit, meio a meio. Porque quero voltar para casa são e salvo, como todo turista. E também quero aproveitar a viagem para experimentar o que não conheço mais a fundo, como um viajante. Mas sei que ter o melhor dos dois mundos é difícil. Porque, na hora de correr riscos, vem a hesitação.

ORIENTE MÉDIO FANTÁSTICO

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Muitas vezes os catálogos das editoras escondem livros que merecem atenção. É o caso dessa novela do veterano autor nacional Carlos Orsi.

O livro se inspira na obsessão europeia pelo mundo árabe, muito em voga nos séculos 18 e 19. Governos e mercenários buscavam as riquezas materiais, e os artistas a beleza e a sabedoria milenares. Ou seja, os sentimentos pelos povos e culturas daquela região misturavam preconceitos e romantismo. Poucos estrangeiros procuraram entender de fato a dinâmica complexa, rica e multifacetada do oriente islâmico.

Na ficção, uma obra do período que ganhou fama de cult e maldita foi o romance Vathek, escrito pelo inglês William Beckford. Este livro curto e intenso nunca foi esquecido, ganhando a admiração de nomes como Byron, Lovecraft, Clark Ashton Smith, Borges e mais recentemente Roberto Bolãno.

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Vathek é um produto do romantismo europeu, mas com um elemento novo, à época. A exploração do tema gótico, com seu clima sobrenatural, comum ao romantismo, é transportada para o ambiente exótico do mundo árabe. Referências culturais, mitológicas e religiosas dos povos do deserto são adaptadas a uma história de terror europeia.

Vathek pode inclusive ser considerada uma obra preconceituosa por mostrar o árabe (essa generalização), acima de tudo, como um povo místico e devasso. Mas o que dificulta a total condenação do romance é a beleza e a força do texto. Para fãs de terror, este livro é um dos mais perturbadores. Para os amantes da literatura em geral, o livro é um dos mais instigantes, criando um mundo fascinante e sombrio.

Ao lermos As Dez Torres de Sangue, a referência a Vathek se torna imediata. Não que a novela de Orsi seja uma mera cópia. O autor brasileiro com certeza leu Vathek, tomando-o como inspiração. Sua história faz ligação entre Brasil, Portugal e o mundo árabe. Depois de sofrerem um naufrágio, um nobre português, sua irmã e um mercenário francês caem nas garras de um homem do deserto. A partir daí, começa uma aventura por terras estranhas.

O que a princípio se mostra como uma trama realista, apenas histórica, logo revela seu componente fantástico.

O texto é muito agradável de ler. A trama é movimentada, cheia de reviravoltas, algumas convincentes, outras não. Mesmo com sua carga de mistério e horror, não chega a ser tão sombrio quanto Vathek. Tem um clima de aventura de Sessão da Tarde, de filmes com efeitos especiais do mestre do stop-motion Ray Harryhausen.

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O maior problema do livro é que ele não subverte a lógica colonialista de por o europeu no centro das atenções. Protagonistas brancos são a esperança para resolver uma agenda local, problemas que os próprios árabes deveriam ter a capacidade de solucionar.

O livro vale a pena por seu ritmo e pelos melhores momentos de interação dos personagens. É algo que se lê de um fôlego só.

As Dez Torres de Sangue, de Carlos Orsi, 96 págs., Draco.

AVALIAÇÃO: BOM