VIAGEM NOTURNA

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Minha intenção foi bater perna por aí, ir adiante quase sem rumo, não planejar muito as coisas. Viajei sozinho para ver e ouvir melhor. Foram duas semanas de andanças pelo interior da Bahia, entre setembro e outubro de 2007. Uma temporada em que esqueci um pouco quem eu sou e me rendi à vivência de outros.

O livro de viagens “Homem com Mochila” foi publicado em 2008. O texto abaixo é um dos capítulos do livro.

VIAGEM NOTURNA

Quando se está num ônibus, à noite, tendo pela frente uma viagem de três horas e meia, quatro horas, podemos fazer poucas coisas, como conversar com o vizinho de poltrona, ouvir música, dormir, comer ou pensar na vida. Já que não havia ninguém ao meu lado, eu não tinha um mp3, estava sem sono e sem fome, só me restou pensar na vida. Mais especificamente no ato de viajar.

No filme O Céu Que Nos Protege, de Bernardo Bertolucci, baseado no romance homônimo do norte-americano Paul Bowles, um casal de ricos nova-iorquinos (Kit e Port) vai ao norte da África do pós-Segunda Guerra em busca de uma aventura existencial. Eles levam a tiracolo um amigo, Tunner. Logo ao chegarem, ocorre o seguinte diálogo:

Tunner: “Nós provavelmente somos os primeiros turistas deles depois da guerra.”

Kit: “Tunner, não somos turistas. Somos viajantes.”

Tunner: “Qual é a diferença?”

Port: “Um turista pensa em ir para casa assim que chega em algum lugar.”

Kit: “Enquanto que um viajante pode nunca voltar para casa.”

Tunner: “Você quer dizer que sou um turista.”

Kit: “Sim, Tunner. E eu sou meio a meio.”

Acredito que Kit e Port estejam certos. Ao passar férias numa praia do Nordeste, por exemplo, apenas flanando, tomando água de coco, cerveja e banho de mar, comendo deliciosas moquecas e peixe frito, lendo na rede e fazendo sexo durante à tarde, queremos mais é recarregar nossas baterias, para suportar novamente o cotidiano. Ou mesmo para voltar a amá-lo. Ao sair de férias, varremos nosso dia-a-dia para debaixo do tapete. Mas sabemos que ele estará lá, nos esperando quando chegarmos em casa.

Para o escritor inglês Alain de Botton, a arte de viajar, como ele chama, nada mais é do que a possibilidade mais concreta de buscar a felicidade, algo que supere, nem que seja por um dia, todos os valores do mundo dos negócios, das cobranças e dos compromissos.

Então, é de espantar como muitas pessoas burocratizam suas viagens, tornando-as tão parecidas com a vida cotidiana. Elas embarcam em excursões cheias de regras, regulamentos e horários a cumprir.

A experiência do viajante é outra, é mais radical – e não falo de trilheiros e montanhistas, que também retornam à civilização no fim de suas aventuras. Porque o viajante torna sua vida uma grande jornada, um desafio inexorável. Para ele, não é suficiente aproveitar uma praia do Nordeste como hóspede de uma pousada ou resort. Ele quer vivenciar, o mais próximo possível, a experiência de ser um local, um habitante do lugar. Passar meses ou talvez anos construindo um novo cotidiano. Mas ele não para, porque há muito o quê conhecer. Ele se considera um nômade. Um colecionador de cotidianos. Possivelmente, o viajante é o último dos românticos.

O caso do escritor inglês Bruce Chatwin demonstra bem isso. Nascido em 1940, de uma família próspera, desde garoto Chatwin sonhou em ser um viajante, como os personagens das histórias de Jack London e Herman Melville, que tanto adorava. Em férias, ele viajava muito com os pais e os irmãos, para a Espanha, Grécia, País de Gales, Suécia, Itália, Oriente Médio e outros países.

Aluno não muito brilhante, seus professores o consideravam um sonhador acordado. Para fugir da rigidez da criação familiar, decide, aos 19 anos, arranjar um emprego na Sotheby´s, a famosa casa de leilões inglesa. Chatwin entendia de antiguidades, uma de suas paixões. Aos 26 anos, largou o emprego e passou um tempo na universidade de Edimburgo (Escócia) estudando Arqueologia, e se mantendo com a venda de peças de sua coleção particular de antiguidades. Realizou trabalhos de campo no Afeganistão e na África.

Em 1973, sem dinheiro, Chatwin aceitou o convite de uma revista inglesa para escrever sobre arte e arquitetura. Era outra oportunidade de viajar pelo mundo. Numa viagem à Patagônia (região entre o Chile e a Argentina), ele ligou para seu editor se demitindo. Passou seis meses por lá. A experiência resultou no relato de viagem Na Patagônia, um best-seller internacional. A partir de então, Chatwin escreveu muitos livros de viagem, romances, artigos e ensaios, consagrando-se como um festejado escritor-nômade.

Nunca parou de viajar. Morou em vários lugares no mundo. Chatwin acreditava que o homem é nômade por natureza, que o movimento é algo muito importante, que a rotina atrofia a percepção. Para os amigos, ele era um grande-papo e um companheiro. Para os detratores, um egocêntrico e mitômano. Chatwin morreu em 1989, na França.

Eu me sinto nessa viagem como a socialite Kit, meio a meio. Porque quero voltar para casa são e salvo, como todo turista. E também quero aproveitar a viagem para experimentar o que não conheço mais a fundo, como um viajante. Mas sei que ter o melhor dos dois mundos é difícil. Porque, na hora de correr riscos, vem a hesitação.

A REVOLTA DE SEU JOSÉ

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Minha intenção foi bater perna por aí, ir adiante quase sem rumo, não planejar muito as coisas. Viajei sozinho para ver e ouvir melhor. Foram duas semanas de andanças pelo interior da Bahia, entre setembro e outubro de 2007. Uma temporada em que esqueci um pouco quem eu sou me rendi à vivência de outros.

O livro de viagens “Homem com Mochila” foi publicado em 2008. O texto abaixo é um dos capítulos do livro.

A REVOLTA DE SEU JOSÉ

“Como o senhor se chama?”

“José.”

“José de quê?”

“José de Souza.”

O homem na poltrona vizinha se mostra disposto a tornar a viagem menos maçante. Não levo comigo nenhum aparelho de mp3 nem a paisagem me interessa. É uma repetição de cenas que já conheço: o sol inclemente castigando a terra seca, pós-apocalíptica.

O ônibus está lotado, inclusive com algumas pessoas em pé. Mas ninguém reclama. As viagens são curtas, rumo a povoados e municípios próximos de Vitória da Conquista. O ônibus não é dos melhores, mas está inteiro. Por não existir concorrência em boa parte dos trajetos que faz, a empresa se acha no direito de prestar um péssimo serviço aos seus passageiros.

“A vida não é brincadeira não. A gente dá um duro danado pra, no final, dá só um pouquinho”, diz seu José, me olhando com firmeza. Os olhos ternos dão mais gravidade às suas palavras.

Ele tem 60 anos. Foi agricultor quase a vida toda. As mãos calejadas comprovam isso. Assim como as dores nas costas e no joelho direito, que o levam todo mês do município de Caraíbas, onde mora com a mulher e dois filhos, a Vitória da Conquista; um trajeto de 65 km.

“A verdade é que a médica disse que eu tinha de fazer fisioterapia duas vezes por semana… Mas me diga como, meu amigo? Como eu faço essa mágica? Dois ônibus pra ir, dois pra voltar… toda semana.”

O filho que vive em São Paulo, dono de uma pequena lanchonete em Jundiaí, paga seu plano de saúde.

A seca em 2007 foi uma das piores dos últimos anos. Em alguns municípios baianos, não choveu por oito meses ou mais. Principalmente no norte, nordeste e sudoeste do estado. O governo federal, auxiliado pelo Exército, pôs em prática ações de abastecimento de água e distribuição de cestas básicas na maioria dos estados do Nordeste. No mês de setembro, o governador Jacques Wagner declarou situação de emergência em 90 municípios baianos.

“Nunca precisei da caridade de ninguém. Sempre o que tive, tive com o suor do meu trabalho. Isso é desde molequinho. Meu pai era um bicho perverso danado, mas ele respeitava trabalhador.”

Para seu José, tanto os eleitores como os governos são culpados, igualmente, pela pobreza do povo, pela falta de perspectivas:

“Prefeito, governador, presidente, tudo uma decepção. Mas o povo também é besta. O problema é que ninguém pensa pra frente. Só quer saber do agora. Aí o cidadão vota por qualquer agradozinho. E o político para a obra do outro pra começar a sua. E a gente fica nisso a vida inteira.”

A seca também o atingiu. Ele perdeu plantações de feijão e milho. Seu alento foram as criações de galinhas e de cabras. E alguns serviços gerais, principalmente, como pedreiro e eletricista.

“Aprendi tudo em São Paulo.”

Segundo ele, ter ido para lá, há mais de trinta anos, foi, ao mesmo tempo, sua fortuna e desgraça:

“Muito trabalho, muita humilhação. Mas aprendi tudo o que eu sei. Assim, coisa que não é da roça…”

“E por que voltou pra Bahia?”

“Cansaço… Foi 8 anos.”

Voltaram ele, dois filhos e a mulher. O filho mais velho resolveu ficar.

“A seca tem jeito, seu José?”

Ele me garantiu que sim. E, para provar isso, começou a falar sobre sistemas de irrigação:

“A terra é boa, homem. O que falta é cuidado. Interesse dos político… Funciona assim: a gente aqui da região tem que puxar água do poço com bomba, de óleo diesel, ou na bateria, porque o lugar é acidentado, a plantação fica no alto. É um atraso. Coisa de antigamente. É tudo na mão, com mangueira. O ideal seria a irrigação de gotejamento. A água é levada de tubo até a raiz da planta. Fica pingando o tempo todo. É uma beleza. A gente economiza água e energia. Mas é um troço caro danado. Precisa de investimento. Mas cadê?”

Ele não tem mais tempo para completar a resposta, para eu ouvi-la. A viagem termina para mim, tenho de descer do ônibus.